----------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5184 Data: 7 de
setembro de 2015
---------------------------------------------------
SABADOIDO
-Rapaz, eu
tento fugir da imagem daquele menino sírio de três anos, encontrado morto numa
praia da Turquia, mas não consigo. Ligo a televisão, aparece o menino, entro no
Facebook e me deparo com mil postagens do menino sem vida.
-Se você abrir
o jornal, aí sobre a mesa, vai ver o garoto. – preveniu-me o Claudio.
-Hoje, quando
eu caminhava, com o radinho ligado no noticiário, falaram da declaração de um
jornalista na Inglaterra sobre essa tragédia que deixou todo o mundo indignado.
-O que ele
disse?- interessou-se meu irmão.
-Ele disse que
o menino morto estava bem vestido e bem alimentado, que o pai buscava uma boa vida
no Canadá.
A indignação passou
também para o Claudio.
-Arriscam a
vida num bote, amontoado de gente, pelo Mediterrâneo, ele perde a mulher e os dois
filhos, e esse sujeito ainda diz que ele queria uma vida boa?!...
-Mal
comparando, essa insensibilidade me lembrou do Paulo Francis. No auge do
Pasquim, o cartunista Vagn se matou. Todos lamentaram, nos seus textos, que um
artista de um potencial extraordinário na arte contemporânea tenha partido tão
jovem, quando o Paulo Francis foi de encontro a todas as lamentações.
-O que ele
disse?
-O Paulo
Francis escreveu que Vagn não passava de um mero imitador de Steinberg, que não
mostrou nada de novo nos seus desenhos. Lembro-me que, na edição da semana
seguinte, o Ziraldo refutou as palavras do Paulo Francis com uma rispidez que
imaginei que eles cortariam relações.
-O Paulo
Francis já tinha feito isso com a Tônia Carrero; fez uma crítica tão violenta
que levou porrada do marido dela, na época, o Adolfo Celi, e levou uma
cusparada na cara do Paulo Autran.- lembrou.
-Pois é, o
Rubem Braga, que deveria tomar as dores, se omitiu.
-O Rubem
Braga?!... Ah, sim! Mas ele era amante da Tônia Carrero naquele tempo?
-Sei lá,
Claudio; mas se é para criticar, nós criticamos, mas sem a virulência do Paulo
Francis. O problema, nesse caso, é que, em vez de se limitar a escrever sobre a
Tônia Carrero como atriz, ele desgarrou para o lado pessoal. Anos depois, ele
reviu a sua crítica e disse que estava doente quando escreveu aquilo.
-Já era tarde,
Carlinhos.
-O Dieckmann
me contou que, certa vez, o Paulo Francis se meteu a falar de carros clássicos
e errou feio. O Dieckmann disse que enviou uma carta do leitor, ou algo
parecido, com as devidas correções. Imaginou que o Paulo Francis replicaria com
aquela violência que lhe era peculiar.
-E assim foi?-
expressou curiosidade.
-Não; ele
respondeu dentro dos padrões civilizados, segundo o Dieckmann.
-Deu sorte.
Certa vez, ele colocou a Olivia de Havilland num filme em que ela não atuou,
uma leitora do jornal corrigiu e o Paulo Francis escreveu que não é arquivista de
cinema.
-Há pessoas
que ficam, cheias de dedos quando me corrigem. Caramba, eu não gosto é que o
erro prevaleça; fico danado comigo, apenas.
-Mas a maioria
não pensa assim, se julga infalível.
-O Daniel e a
Gina saíram para ver a exposição do Picasso no Centro Cultural do Banco do
Brasil e eu falei no Steinberg. Havia,
no Pasquim, quem garantisse que Steinberg era melhor do que Picasso.
-Ninguém sabe
quem é esse Steinberg.
-Saul
Steinberg foi um cartunista e desenhista romeno que viveu nos Estados Unidos,
onde desenhou nas publicações de grande tiragem e influenciou gerações de
artistas. O Vagn foi um deles; creio que alguma coisa do traço do Millor Fernandes
é do Saul Steinberg. Lembrei-me, agora, Claudio, houve um livro do Millor
Fernandes que teve de ser recolhido porque um desenho de Steinberg foi
atribuído a ele.
-Então, havia semelhanças.
- concluiu meu irmão.
-Daquela turma
do Pasquim, eu não tinha a menor dúvida que o Millor Fernandes era o número 1;
além de possuir uma cultura que rivalizava com a do Paulo Francis, possuía uma
criatividade muito maior, incomparável.
-Você falou
nesse desenhista que se matou, Vagn; o nome verdadeiro dele não seria Vagner?
-Provavelmente.
O nome levou o
meu irmão ao compositor alemão.
-O Paulo
Francis ouvia as óperas de Wagner a todo o volume; os vizinhos batiam à porta
para reclamar.
-Isso, quando
ele morava num apartamento em Nova York?
-Sim,
Carlinhos. Ele dizia que era impossível ouvir Wagner com o volume baixo; os vizinhos
continuavam a reclamar e a mulher dele, a Sônia Nolasco, tinha de se virar com
os descontentes.
-Com os
anti-wagnerianos. O mundo musical foi dividido em wagnerianos e
anti-wagnerianos, era como a esquerda e a direita na política, Porque Verdi não
misturou as vozes de Otello e de Desdêmona, no dueto de amor, foi acusado, a
palavra era esta, acusado, de wagneriano. A coisa era nesse nível.
-Mas mudou
depois?
-Não
completamente, Claudio. Uma vez o Sérgio Fortes levou o Fiani, que era
professor da Fundação Getúlio Vargas, para comentar a ópera Pélleas et
Mélisande, de Debussy. Em determinado
momento, o Fiani criticou o Wagner e o Sérgio Fortes lhe disse que os
wagnerianos iam pegá-lo lá fora.
Após uma
pausa, retomei o discurso.
-Há músicas
que mesmo sendo ouvidas em volume baixo são barulhentas, isso acontece com a
grande maioria que é composta hoje, Quanto a Wagner e outros compositores
eruditos, o volume tem de ser alto porque as suas criações abrangem sonoridades
em fortíssimo e em pianíssimo. Não há como desfrutar todas as notas com o som baixo.
-Vá dizer isso
para os vizinhos do Paulo Francis, Carlinhos.
-Você conheceu
o Odilon, aquele que era advogado e trabalhou comigo?
-Conheci. -
confirmou.
-Ele me disse
que, certa vez, os vizinhos de um apartamento de Copacabana, onde morou,
fizeram uma barulheira infernal. Ele se vingou com o “Bolero”, de Ravel.
-Com aquele
tema repetitivo?
-O “Bolero”,
de Ravel, é muito mais do que isso: além da riqueza orquestral, Ravel foi um
dos maiores orquestradores de todos os tempos, a intensidade da música cresce a
cada ciclo. Sabendo dessa intensidade crescente, o Odilon colocava o disco para
tocar, no volume máximo e saía de casa.
-Esperto o
Odilon. – sorriu meu irmão.
-Começava
baixinho e terminava ensurdecedor. Vinte minutos depois – disse-me o Odilon – ele votava para o seu apartamento.
-Quando o
“Bolero” já tinha acabado.
-Lembra-se de
um Sabadoido, Claudio, em que o Vagner me perguntou qual a duração do “Bolero”,
de Ravel?
-Lembro-me.
-Eu lhe
respondi que depende do maestro; uns regem em 15 minutos, outros em 17, e por
aí vai.
-Cada maestro
um tem uma leitura.
-O Toscanini
regeu o “Bolero” na presença do Ravel, que reclamou porque ele regia com muita
rapidez. Toscanini, que além de genioso era opinioso, disse para Ravel que ele
não entendia nada da música que havia composto.
-Muito
folgado.
-Será que o
Daniel e a Gina já estão vendo, agora, as pinturas de Picasso?
-Nada,
Carlinhos; devem estar na fila com toda essa friagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário