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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5180 Data: 31 de
agosto de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLVI
NOTAS (O5) - Superado
o supletivo, parti para o vestibular. O tempo para tentar uma universidade
particular já havia passado, tudo bem; eu requentaria o concurso que fiz para o
Colégio Militar, em 1960, quando mal saíra da Escola 9-10 Manoel Bonfim, ou
seja, eu não estava apto. Em poucos meses, eu não ficaria afiado para resolver
as intrincadas questões de Química, Física e Matemática, da Fundação
Cesgranrio, principalmente Física, em que a nota média era menor que 3,
considerando candidatos que, além de se prepararem em cursinhos durante um ano,
cursaram os três anos completos do 2º grau. Quanto às faculdades pagas, que
aguardavam os reprovados do vestibular unificado, as minhas chances eram maiores.
Já narrei, centenas de páginas atrás, que escolhi a
Faculdade de Economia e Finanças do Rio de Janeiro, que o Simonsen mudara para
Faculdade de Economia e Finanças da Universidade do Brasil (vergonha de quê,
Simonsen, você foi o maior economista brasileiro?), porque ficava próxima à
estação de trem da Central do Brasil.
Inscrevi-me para as 200 vagas em Economia, na própria
faculdade, depois de desconsiderar Administração de Empresas, Ciências
Contábeis e Atuariais. Era um casarão que deveria remontar às primeiras décadas
do século XX, como o da minha avó em São Cristóvão, tão rememorado por mim, mas
sem as baratas, pelo menos as cascudas que nunca vi por lá nos quatro anos em
que lá estudei.
Voltei às apostilas do meu irmão e, muito mais do que
isso, aos fascículos Abril Vestibular, do grupo Victor Civita, que me foi
emprestado pela Sandra, irmã do Vagner, vizinhos da Rua Chaves Pinheiro.
Eram 50 fascículos, se não me engano e, em cada um, se
encontravam as matérias a que os vestibulandos seriam submetidos.
A parte da História se lia como se fosse um romance,
exemplo: a Revolução Industrial e os operários, incluindo as crianças,
trabalhando mais de 12 horas nas minas de carvão. Parecia que eu relia
“Germinal”, sem o estilo de Zola, evidentemente. Tomava conhecimento da
importância do café com leite para o sustento daqueles trabalhadores vitimados
pelo capitalismo selvagem. Como ilustração, o fascículo reproduzia a antológica
página de Balzac sobre a rubiácea, o quanto ele devia ao café por mantê-lo com
a mente acesa da meia-noite ao meio-dia, período em que escreveu seus 88
romances, embora só vivesse até os 51 anos de idade.
Obviamente que, na Revolução Industrial, a função
precípua do café, que inspirou uma cantata de Bach, era manter os músculos mais
ágeis do que os cérebros.
Para mim, preparando-me para as provas, o perigo era
fruir a parte romanceada da matéria sem me deter em pinçar os pontos que
poderiam ser transformados em questões de um teste, uma coisa sacal, mas que eu
teria de considerar.
Enfim, gostei tanto desses fascículos que imaginei a
irmã do Vagner, não vendo mais serventia neles, não os pedisse de volta, mas
ela pediu, infelizmente. Caso a minha esperança se concretizasse, eu não me
mostraria tão impreciso, no início desse texto, quanto ao número exato de
fascículos e páginas. Eu os teria encadernado, como costumava fazer o meu pai
com seus gibis favoritos, transformando-os em volumes. Se eu não pude fazer isso, alguém, com
certeza, pôde. Aguarde uns minutos, leitor, que vou procura-lo no Google.
Encontrei-o: um fascinado
por essas publicações do Victor Civita, como eu, elaborou 3 volumes
encadernados de 2 kg cada. Aqui vão os números exatos, 30 fascículos; o Curso
Abril Cultural contemplava as seguintes matérias: Gramática, Literatura,
História Geral, História do Brasil, Geografia Geral, Inglês e Matemática, além
de apresentar inúmeros testes e questões de vestibular simulado.
Como se depreende, pela
falta de três matérias, Biologia e, principalmente, Química e Física, importavam
apenas as Ciências Humanas. A Matemática, embora constasse, não era aquela que
exigia cálculos complexos em álgebra e trigonometria, desta parte eu me recordo
bem. Enfim, se a Abril Vestibular não dava régua e compasso a um candidato ao
curso de Engenharia na USP ou na UFRJ, provavelmente, quem se debruçasse sobre
ela teria êxito numa faculdade menos demandada.
Eu exagerei e meu irmão, vendo-me
estudando com poucas pausas de descanso, perguntou-me se eu pretendia passar em
primeiro lugar. Ele sabia do que falava. Realizara o temível exame da Fundação
Cesgranrio, presidida pelo Prof, Carlos Alberto Serpa, na área de Direito, e
logrou um lugar na Universidade Católica de Petrópolis; o custo da matrícula,
de uma pousada e mais a distância dos amigos de chope o levaram a um plano B.
Tentou a Universidade Cândido Mendes, um mês depois e foi aprovado. Não estudou
alucinadamente, por que eu o fazia? – estranhava ele.
Os exames, tanto do
vestibular quanto os do madureza, trouxeram-me o vício da competição, o que era
lamentável, pois o estudo deixava de ser inteiramente prazeroso para mim como
no tempo do Visconde de Cairu. Eu me cobrava a ponto de me tornar um ansioso.
Uma das minhas ansiedades, nos dias que antecederam as provas era saber qual
era a relação candidato por vaga. Vicente, um amigo que morava numa vila da Rua
Chaves Pinheiro e tinha acesso ao telefone, ficou encarregado, a meu pedido, de
me informar.
No primeiro telefonema que o
Vicente deu, disseram-lhe que não havia ainda esses dados; no segundo, falou-me
que uma voz irritadiça lhe disse a mesma coisa. Coitado do Vicente, por causa
da minha insistência, telefonou pela terceira vez, em menos de uma semana e
levou um esporro. Estudei, então, como se fossem 10 vagas por candidato,
estatística de doido.
As provas seriam no Maracanã
e durariam 4 horas cada uma delas. Meu pai me deu as coordenadas para chegar
lá: ônibus 622 Ramos-Praça da Bandeira – via Saens Peña. Lá fui eu.
Até o meado dos anos 60, eu
assistia, com alguma assiduidade, jogos no Maracanã, sempre na geral, agora,
como candidato, eu me instalava nas cadeiras, sob a vigilância dos
examinadores, que colocavam entre um e outro postulante à faculdade, um espaço
de três cadeiras vazias, ou seja, não éramos muitos.
Sentei-me e o gramado verde
se estendeu à minha frente. Não pensei, naquele momento, nos craques que ali
deslumbraram multidões, nem nos que decepcionaram. Eu queria que começasse logo
aquilo. Dado o aviso que os papéis seriam recolhidos impreterivelmente ao
meio-dia, foi dada a partida às 8 horas em ponto.
Nada ali foi tão assustador
quanto às provas de geografia e matemática dos exames do supletivo que eu
prestara uns dois meses antes; nem mesmo inglês que, pelo contrário, foi, para
mim, o que se chama coloquialmente de “baba”. Além de eu ter estudado inglês,
no Visconde de Cairu, nos Books One, Two, Three, Four, eu havia lido, quando
fora do colégio, “Summer of '42”, que redundou no filme “Houve Uma Vez Um
Verão”, e, falo sério, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (nesse livro, até as
receitas culinárias da Dona Flor estavam na língua inglesa).
Bem, não era para eu me preocupar com o resultado,
mas, tantos anos afastados das lides escolares, eu não sosseguei. O resultado
saiu, no jornal, por ordem de classificação dos 200 aprovados. Com os meus pais
à minha volta, passei a vista pelos nomes e não vi o meu; mais aflito, olhei
uma segunda vez, nada. Informei que não passara e a minha mãe me garantiu que
não havia problema algum, que ficaria para a próxima. Nesse momento, meus olhos
bateram no meu nome. Fiz a contagem e constatei que passara em 14º lugar. Como
eu era inocente!... Com aquela página do
jornal guardada como relíquia, e, já estudando alguns meses com aqueles que,
agora, não eram mais nomes impressos para mim, concluí que a desfaçatez correu
solta nesse vestibular, pois entre os dez primeiros colocados, no mínimo, havia
parentes de primeiro grau de professores, amizades de longa data, compadrio, enfim, tudo o que leva aos
favorecimentos mais deploráveis. Mas isso são bagatelas.
Importa que, tudo correndo
bem, eu me formaria com 32 anos de idade, como Helmut Schmidt.
Antes tarde do que nunca.
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