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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5187 Data: 12 de
setembro de 2015
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123ª VISITA
À MINHA CASA
-Maria I, a !... – por pouco não disse “Louca”, freei
minha língua a tempo.
-De novo no Brasil.- disse sem entusiasmo algum.
-Quem não gostou muito de vir para cá foi a sua nora.
-A Carlota Joaquina?!... Por questões políticas, tive
de aceitar seu casamento com o meu filho João. Eu não gostava daquela
espanhola, que deveria ser temente a Deus.
-Aqui, um prefeito doi... de novo não falei o
adjetivo, para não melindrá-la e voltei ao início:
-Aqui, um prefeito deu o nome dela a um túnel. Se era
para homenagear uma rainha, por que não a senhora?
-Esqueceram que, antes de ser rainha, eu ostentava o
título de Princesa do Brasil.
-A senhora foi a única rainha de Portugal que empunhou
o cetro e governou por si própria.
-No meu país, não havia esse código inventado pelos
franceses, a Lei Sálica, que impedia uma mulher de governar.
-O meu pai não teve um só filho homem; assim, vendo
que eu o sucederia, pensou em um marido português para mim e escolheu seu
irmão, dom Pedro.
-Você se casou com seu tio?... – não contive o meu
estranhamento.
-Eu e o Príncipe Dom Pedro nos demos muito bem. Foram
três os nossos filhos: José, o meu preferido, que morreu desgraçadamente; João,
que vocês brasileiros também conhecem muito, e Mariana Vitória, que viria a se
casar com o infante de Espanha, Dom Gabriel.
Com o seu pai, Dom José I, como rei, o Marquês de
Pombal foi uma espécie de Cardeal Richelieu, de França: possuía um poder
incomensurável.
-Eu e o meu marido o odiávamos. Como poderíamos gostar
de uma criatura que lia Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Diderot, esses hereges
todos? Mas meu querido pai não enxergava a maldade deste mundo.
-Tanto você como o príncipe Dom Pedro...
-Também príncipe do Brasil. – fez questão de
ressaltar.
-Sim, vocês dois, os príncipes do Brasil, não engoliam
o Marquês de Pombal. E ele percebia isso.
-Evidentemente que sim; o diabo o alertava de tudo.
Ele, sabendo que, morrendo meu pai e eu subindo ao trono, acabaria com a
influência do demônio em Portugal, tentou introduzir a Lei Sálica para que o
neto do rei o sucedesse como Dom José II, colocando-me fora da sucessão.
-O seu filho primogênito, que morreu ainda novo?
Confirmou com um balançar brusco de cabeça.
-Sabendo dessa intenção, o Marquês de Pombal caiu em
desgraça com a senhora.
-Não foi só isso; ele perseguiu os jesuítas...
-Sim; expulsou-os do Brasil.
-Não me interrompa. - mostrou o seu mau gênio.
Ouvi como um obediente súdito e ela prosseguiu:
-Ele foi um diabólico adversário da cúria romana,
reformador dos conventos. Foi uma peste que provocou a ira de Deus e nos trouxe
o terrível terremoto de Lisboa.
-O terremoto foi tão devastador que seu pai escreveu
para a irmã, Bárbara de Bragança, que era um rei sem reino num país sem
capital.
-Castigo dos céus! – bradou.
-Enquanto isso, o Marquês de Pombal dizia: “Sepultemos
os mortos e cuidemos dos vivos.
-Frase típica de um herege, que falou como se tudo
acabasse com a morte. Temos, sim, de cuidar também dos mortos.
-Dom José I faleceu em 1777 e a senhora o sucedeu.
Acabava, assim, o poder do Marquês de Pombal.
-Ele não esperou mais do que uma semana para deixar de
ser ministro e receber ordens para recolher-se à sua casa de Pombal.
-Voltou ao pombal. - não resisti à piada que a rainha,
como o seu mau humor encruado, não percebeu.
-Devolvi, em seguida, a liberdade aos seus opositores,
por ele encarcerados.
Certamente, o revanchismo não parou por aí. - pensei
sem me manifestar.
-Parentes e amigos do Marquês tiveram de se explicar,
de provar que não traziam o satanismo do mentor. O seu medalhão do monumento do
Terreiro do Paço foi arrancado por ordem minha.
-Não pararam por aí.
-Ele teve de responder a um processo e dois
desembargadores o submetiam a interrogatórios sem tréguas.
-Mas o Marquês de Pombal, um estadista, já era um
senhor combalido. - penalizei-me.
-Ele quebrou Portugal por três vezes.
No momento, não entendi nada; a compreensão viria
depois.
-Frei Inácio de
São Caetano, grande teólogo, arcebispo de Tessalónica, meu confessor, me
convenceu que o Marquês de Pombal já pagara por seus pecados. O procurador da
coroa, Pereira Ramos, afirmava o mesmo, mas muitas pessoas, chegadas a mim,
diziam que não, que o Marquês ainda tinha muito a purgar. Eu fiquei indecisa,
mas segui o pedido do Frei Inácio, embora não estivesse convencida. Eu sentia,
ainda, que não levava até o fim a justiça de Deus contra ele.
-Mas a senhora mesmo disse que o seu confessor era um
grande teólogo.
-Sim; mas eu não estava convencida. Se eu não o
torturasse como a justiça divina exigia, eu não me perdoaria.
-Dona Maria I, apesar de eu não ter estudado muito a
História de Portugal, sei que os dois, Pereira Ramos e o Arcebispo lhe deram
bons conselhos para gerir bem o seu reino. Assim, viagens e explorações
científicas às colônias foram bem sucedidas, que trabalhos geodésicos foram
realizados, que a esquadra da Marinha Portuguesa se desenvolveu notavelmente.
-Para mim, o mais importante foi edificar a basílica
do Coração de Jesus, que doei às freiras carmelitas e de ter fundado a Igreja
da Memória, na Ajuda, onde os Távora atentaram contra a vida do meu pai no ano
do terremoto de Lisboa.
-Os céus se acalmaram. - disse com o pensamento nas
tragédias da natureza de que Portugal se livrara, mas ela não entendeu assim.
-Meu confessor morreu, pouco depois, a minha mãe Dona
Mariana Vitória, depois, o meu querido marido Dom Pedro. O meu primogênito
sofreu um ataque de bexigas, rezei diuturnamente, ele escapou da terrível doença,
mas cinco anos depois, meu amado filho morria. O meu coração não aguentava
tanto sofrimento.
-E o seu novo
confessor?
-O bispo de Algarves?... Ele não tranquilizava a minha
alma como o bispo de Tessalónica, pelo contrário, sempre que ele me falava, eu
me sentia ainda pior, mais atormentada. Ele queria que eu reabilitasse os
Távora, a família que atentou contra a vida do rei, do meu pai. Eu não poderia
fazer isso.
Depois de uma pausa, quando respirou fundo,
prosseguiu:
Uma vez, pedi que levassem até as crianças, elas me
acalmariam, pois é delas o reino dos céus como diz os evangelhos. Juntaram
algumas delas e eu falei para que me ouvissem.
-Desculpe-me a curiosidade; o que disse para elas?
-O Dia das crianças é o dia da mãe, do pai e das
professoras, mas também é o dia dos animais. Sempre que você olha uma criança,
há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, que é algo muito
importante.
-O contato com a meninada a acalmou?
-Nada; eu era importunada pelos lusitanos que citavam
“Os Lusíadas” e me pediam para levar Portugal à época da prosperidade das
grandes navegações.
-O que a senhora lhes disse:
-Não vamos colocar meta. Vamos deixar a meta aberta,
mas, quando atingirmos a meta, vamos dobrar a meta.
-Entendo. - disse-lhe.
-Uma vez, saindo do teatro, senti-me mal; os médicos
fizeram sangria. Escreveram para Londres pedindo os serviços do Dr. Willis, o
médico que curou a loucura do Rei George III, da Inglaterra. Ele pediu uma
fortuna para ser o meu médico, isso não seria problema: bastava-me aumentar os
impostos. Que tratasse das minhas constipações, porque doida eu não estava.
-Certamente que não, rainha.
-Louca eu fiquei quando me obrigaram a entrar num
navio e vir para o Brasil, porque um sujeito ateu da França ateia, de nome
Napoleão Bonaparte, invadiu Portugal.
-E do que a senhora se recorda da sua estada no
Brasil, rainha?
-De poucas coisas. Lembro que eu sempre saía à rua
acompanhada de muitas aias, e o populacho nos apontavam dizendo: “Maria vai com
as outras”.
-Recorda-se do nome de algumas dessas outras?
-Ideli, Gleisi, Jandira, Maria do Rosário...
Nesse instante, soaram as badaladas do relógio e Maria
I, a Louca, partiu repentinamente.
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