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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5182 Data: 05 de
setembro de 2015
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SABADOIDO
Com uma má distribuição
capilar na cabeça, ou seja, fartura de cabelos nos lados, carência deles no
cocuruto, resolvi entrar na barbearia quando seguia caminho para mais uma
sessão do Sabadoido. Lá, fui informado pelo Fonseca, que conduz os trabalhos
por 44 anos, que o seu irmão Paulo, o podador das minhas madeixas, se
encontrava em casa, porque passara por uma cirurgia, e que só retornaria às barbas,
aos cabelos e aos bigodes na seguinte terça-feira. Percebi que ele, ao me
comunicar essa notícia, julgou que eu fosse embora; se assim pensou, errou,
pois eu me encontrava como o Ministro da Fazenda Joaquim Levy: quanto mais cedo
fosse o corte, melhor.
Não passava das 7h 30min da
manhã e só estávamos nós dois lá.
Fonseca não possui o
repertório de novidades – eufemismo para fofocas – do Paulo, mas como tivemos
um amigo comum, que vinha do trabalho, na PREVI, do Centro, para cortar o
cabelo com ele, em 1977, trazendo-me na carona do seu carro, puxei conversa
sobre ele.
-Geraldo morreu.
-Morreu?!... Pois é, o
Wagner morreu.
-Mais um surdo. - pensei na
minha mãe.
Bem, agora, o Geraldo tinha
de esperar.
-Vagner tinha, Fonseca, uma
epilepsia de uma agressividade nunca sabida, pelo menos por mim, que não sou
versado no assunto.
-Não era doença. – afirmou
com segurança.
-Bem, a Gina me disse que os
exames de tomografia computadorizada, a que se submeteu, não indicaram nada.
-Não indicaram nada, porque
aquilo era carma. Eu avisava, mas o pai dele era turrão e o tratamento correto
não foi feito.
-Hoje, seria o dia de ele se
reunir com a gente na casa da Gina. Nós nos juntávamos todos os sábados lá. A
Celma, viúva dele, disse que esses encontros eram uma das suas poucas alegrias.
Com essa friagem, ele, certamente, apareceria todo encapotado e com meias de
lã.
-Muito turrão o pai dele. –
insistiu.
Voltei ao assunto triste que
o Fonseca não percebera.
-Sabe o Geraldo, aquele que
estudou comigo na faculdade, e vinha de longe cortar o cabelo com você?...
Morava na Rua Fadel Fadel no Leblon?...
-O Geraldo Maluco?...
Até alguns anos atrás, Fonseca
me perguntava pelo meu amigo com esse epíteto; como ele desaparecera da sua
barbearia, a sua curiosidade se esvaiu com o tempo.
-Era maluco mesmo, pois,
sofrendo de diabetes, não largava as tulipas de chope. Nunca mais o vi, soube
do seu falecimento pela página fúnebre do Globo.
-Geraldo Maluco... – escandiu
bem as sílabas com o semblante de quem carregava boas lembranças para o
presente.
-O Geraldo me contava que o
conheceu quando a sua barbearia era no Jacaré.
-A minha barbearia era na
Tijuca. – reagiu indignado.
Aqui um parêntese: a Rosa
Grieco, vez ou outra se refere à sua “combalida memória”, puro jogo de cena
para quem – não seria surpresa para mim - inspirou Jorge Luís Borges na
elaboração do personagem Funes, o Memorioso. Quanto a mim, não tenho a memória
“combalida” da Rosa, mas garanto que o Geraldo, quando trabalhava na agência do
Banco do Brasil, no Jacaré, descobriu a perícia do Fonseca em matéria capilar e
o seguiu, apesar das mudanças de endereço, durante um bom tempo. Desconfio, neste
momento, que a indignação do Fonseca se deve ao fato de ele ter julgado que eu
aludia ao Jacarezinho, que muitos não tratam pelo diminutivo. Eu deveria ter
falado na Rua Lino Teixeira para que dúvidas não fossem suscitadas, mas, agora,
era tarde.
Fonseca que, comumente,
trabalha em 33 RPM, enquanto o seu irmão, em 78 RPM, cortava meu cabelo com certo
vagar; com certeza, a ausência de fregueses, naquela hora, o deixava relaxado.
Minutos depois, quando me apresentou a conta, calculei que a pouca frequência
era em todas as horas.
E pensar que, no auge do
Plano Real, ele manteve o preço de R$ 9,00, durante uns 10 anos, pelo corte do
cabelo. – dizia comigo mesmo quando saí de lá rumo à casa do meu irmão. Depois,
converti os valores em dólares e constatei que, aquele preço, representaria,
hoje, 36 reais. Dentro dessa perspectiva, os 26 reais que ele me cobrou saíram
mais barato.
Minutos depois, encontrei
minha cunhada e meu sobrinho vestidos para sair.
-Vamos ver a exposição do
Picasso no Centro Cultural Banco do Brasil.- informou-me a Gina.
-Mandem lembranças minhas às
Madames de Avignon. - não perdi a piada.
-Parece que elas não vieram,
Carlão,
-Eu lhes contei sobre aquele
garoto com a mãe na exposição do Monet, em 1997, no Museu Nacional de Belas
Artes?
-Umas duzentas vezes,
Carlinhos.
-O garoto olhou uma tela de
Monet e disse: “Mãe, está tudo borrado.” – seguiram-se as palavras do Daniel às
da Gina.
-Tratem, então, de ficar
perto das crianças nessa exposição, pois elas falam o que os adultos calam para
não perder a pose de entendidos em Artes Plásticas. – aconselhei.
-Estarei perto da criançada,
Carlão.
-Preparem-se para ficar
horas esperando com esse frio de polo sul. – alertei-os.
-Vamos encontrar até pinguim
na fila da exposição. - mostrou-se a Gina preparada para o programa cultural.
-É a Roberta. - anunciou o
Daniel quando soou a buzina de um carro.
Saíram e o Claudio continuou
calado, ainda absorvido na resolução de uma palavra cruzada.
-Alguma notícia que não seja
trágica no jornal de hoje? – perguntei-lhe quando vi O Globo sobre a mesa da
cozinha.
-Notícias amenas só no
caderno ELA. - respondeu-me.
Meus olhos bateram numa nota
que anunciava uma entrevista do Fernando Henrique Cardoso na página 6; folheei
o jornal e me pus a lê-la.
Mal li o primeiro parágrafo,
não me contive e comentei:
-O FHC diz, agora, que o
Lula era um mito que se quebrou. Quando estourou o escândalo do mensalão, em
2005 e a oposição queria pegar o chefão, ele disse que o Lula era um símbolo.
Não faz muito tempo, assim, ele repetia essa balela que o Lula era um símbolo.
Ora, símbolo é o Mandela, o Lech Walesa, para ficar nos atuais e não recuar até
Gandhi. Agora, Lula!... Pelo amor de Deus.
-Você não é um grande
admirador do Fernando Henrique Cardoso?
-Sou, considero-o um
estadista, mas tenho cérebro para pensar; não aceito tudo como se a minha mente
fosse um papel carbono.
-Esse negócio de símbolo é
coisa de sociólogo; masturbação sociológica, como dizia o Serjão, que o
adorava, mas também o criticava. - manifestou-se.
-O FHC foi tachado de
neoliberal pelos petistas, mas ainda guarda uns cacoetes da esquerda. Eu me lembro
de que, no meio daquelas agitações estudantis, na França, em 1968, quando os
operários da Renault entraram de greve, um daqueles líderes estudantis
discursou com um megafone na mão.
-E o que ele disse? –
interrompeu-me.
-Dirigiu-se aos operários e,
com a cabeça prenhe de ideologias, disse que lutava, junto com os seus colegas,
por um mundo muito melhor para o operariado. Bem, aumentaram os salários e
todos retornaram ao trabalho. A ideologia é dinheiro no bolso.
-Mas o Lula, como operário,
só se contenta com milhões no bolso.
-Que símbolo é este, Claudio?
Ele retornou às palavras
cruzadas e eu retomei a leitura da entrevista do único estadista vivo do Brasil
que, nem por isso, está livre das escorregadelas.
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