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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5177 Data: 27 de
agosto de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRICO XLV
1ª PARTE
NOTAS (4) – Black dog
quando abocanha custa a largar, quando larga.
Bem, doze anos depois, voltei às
provas. Muitos anos haviam transcorrido e não havia tempo a perder. Buscava
exemplo de personalidades que, mesmo tardiamente, retomaram os estudos e
avançaram, não se arrastando com o peso do passado. Uma delas era o
primeiro-ministro-alemão Helmut Schmidt que, depois de pertencer à juventude
hitlerista, teve, contando 21 anos de idade, de trocar os livros pelas armas, combatendo
na terrível frente russa e na ofensiva de Ardenas. Com a derrota alemã, foi
aprisionado pelos britânicos. Depois desses percalços, voltou aos livros e se
formou em Economia com 32 anos.
Para eu conseguir o feito do
ex-combatente da Alemanha, formar-me em Economia com essa idade, eu não tinha
tempo a perder, afinal, o exame supletivo fora criado para isso mesmo e havia
uma vantagem que eu não podia desperdiçar: o exame do 2º grau não exigia o
diploma do 1º. Ora, eu cursei oito meses do 4º ano ginasial do Visconde de
Cairu, o que valia, com muitas sobras, mais do que o ensino integral equivalente
ao curso ginasial ministrado em meados da década de 70.
O problema era o 2º grau que, na minha
época de Visconde de Cairu, era o curso científico ou clássico. No longo
período em que fui abocanhado pelo black dog, fiquei tão atraído pela
literatura, que raramente peguei livros didáticos para ler. Agora, nutrindo o objetivo de voltar
às aulas, eu tinha de trocar a minha atenção: o tempo de ler em pouco mais de 15
dias as quase 1200 páginas do “Guerra e Paz”, de Tolstoi, ficara para trás.
Ajudou-me o fato de o Claudio, meu
irmão, ter ainda as apostilas do Curso GB, onde estudara para prestar os exames
supletivos dos dois anos imediatamente anteriores a 1975, quando chegou a minha
vez. Com elas, refresquei a memória do que eu já estudara e avancei no que era
novidade para mim.
Uma medida do Presidente Ernesto Geisel
complicou um pouco os meus planos: ele fundiu o Estado da Guanabara com o
Estado do Rio de Janeiro, nomeando Governador o Vice-Almirante Floriano Peixoto
Faria Lima. Assim, saíam Chagas Freitas e, com ele, Romualdo Carrasco, que era
a autoridade designada para administrar os exames supletivos. Saía também um
pouco do populismo do MDB, herdado dos partidos políticos pré-Revolução 64,
UDN, à parte, as provas sem maiores complexidades e a nota 4,5, em alguns
casos, suficiente para a aprovação. Com o substituto do Romualdo Carrasco - aquele
que, na realidade, justificava o sobrenome do antecessor - a aprovação seria
com a nota 5, e duas provas, pelo menos, foram arrasa-quarteirões. Mas não
vamos nos antecipar.
Inscrevi-me para as provas no Colégio
República do Peru, localizado no Méier. Ele me trazia uma recordação de
êxito. A minha irmã, que fracassara no
ano anterior, 1961, no concurso para o ginásio, foi animada pela Guiomar, sua
nova amiga e vizinha, na vila da Rua São Gabriel, onde fomos morar e se
inscreveu para cursar o ginasial nesse colégio. Eu, que cursava o primeiro ano
do Visconde de Cairu, me pus a prepará-la para as provas; e gostei da minha
missão, pois a minha irmã mostrava, como sempre mostrou, disposição para
aprender. Bem, ela passou, mas a Guiomar, não; como as aulas eram noturnas, o
nosso pai, alegando que ela teria de se deslocar a noite para o colégio, sem
companhia alguma confiável, lhe podou o desejo de se aprimorar
intelectualmente. Tal veto a deixa indignada até hoje, pois meu pai movera
mundos e fundos para os nossos dois irmãos - que fugiam dos livros, na época,
como os vampiros dos crucifixos - estudarem, enquanto ela se tornava mais uma
vítima da sociedade machista daqueles anos. Mas assim eu me desgarro da minha
história.
Saí do República do Peru mais decidido
do que nunca a estudar.
A primeira prova foi de português e se
realizou no Instituto de Educação. O meu pai me acompanhou para me dar
confiança. Era um sacrifício e tanto para um senhor de 60 anos de idade, que
trabalhava duro de segunda a sexta-feira, perder uma tarde de sábado para
levar, esperar e buscar um filho que prestava exames escolares. Eu não poderia
decepcioná-lo. Desfaço, agora, uma injustiça: ele também moveu mundos e fundos
por mim, sem esquecer a minha mãe que estava sempre por trás de tudo.
Era a primeira vez que eu entrava na
Escola Normal Instituto de Educação, o sonho dourado das meninas que pretendiam
ser professoras nos muitos anos que antecederam a minha entrada no Visconde de
Cairu e alguns anos depois. À guisa de curiosidade, quem tirou o primeiro lugar
no concurso que eu prestara para o Cairu também foi aprovada no Instituto de
Educação e, logicamente, preferiu ingressar do educandário da Rua Mariz e
Barros.
Bem, lá, eu não tinha tempo de me
maravilhar com nada, nem mesmo com aquela arquitetura; estava fixado em tirar
uma nota maior do que 5 para não cair fora logo no primeiro obstáculo.
Era a minha primeira vez, como
estudante, que eu topava com uma prova de múltipla escolha e logo com a nossa
língua portuguesa. Eu levaria uma boa vantagem se houvesse redação, tinha uma
boa bagagem de leitura; não precisava copiar uma página de Balzac, como o
garoto do filme “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, que tentou enganar
seu professor. Eu guardava um número razoável de páginas e escritores na memória.
Mas tinha de lidar com cruzinhas em 20 questionamentos com cinco quadradinhos
em cada um deles, ou seja, eu, como os demais candidatos, tínhamos pela frente
100 quadradinhos para inserir 20 cruzinhas.
Algumas pessoas que nunca se destacaram
em matemática, que nada entendem de números, insinuam que a múltipla escolha
capacita os sortudos. Não é nada disso; a chance de, em 3 questões, se acertar
3 é de uma em 125; em 4 questões é de
uma em 625, e, assim, exponencialmente. Prova de múltipla escolha não é
loteria, não é jogo, a sua deficiência é de não testar o talento argumentativo
do candidato.
Até mesmo em matemática, é preciso que
o aluno apresente a sua memória de cálculo, que mostre os caminhos que seu
raciocínio desbravou.
Bem, mesmo com todas as múltiplas
escolhas, em me saí bem no exame de Português, mas o valor da nota fugiu da
minha memória para nunca mais ser alcançada.
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