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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5159 Data: 30 de
julho de 2015
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207ª CONVERSA COM OS TAXISTAS
O SEGUNDO TAXISTA DESMEMORIADO
Encerrada a visita à minha sobrinha,
onde encontrei a minha irmã, avisei que desceria à rua para pegar um táxi. A
minha irmã me pediu que aguardasse cinco minutos, que logo sairiam todos no
carro do seu genro, com destino a uma igreja e ele me daria uma carona até a
Rua Adriano, que é bem mais segura do que a 24 de Maio. Argumentei que, lá
embaixo, na calçada, se eu erguesse o braço para coçar a cabeça um táxi parava.
-Aqui está muito perigoso. - insistiu
no alarme.
-Vem com a gente, Carlinhos. - pediram
a minha sobrinha e seu marido.
Contrariado, acedi.
No elevador, descendo nós quatro, minha
irmã contou o seu drama quando chegou: rogara ao taxista que esperasse um
pouco, antes de abrir a porta para ela sair, porque um cracudo passava em
frente ao prédio.
-Suzete, se você soubesse por quantos
cracudos eu cruzo quando vou de casa à estação do metrô de Del Castilho todos
os dias de trabalho... pedem, às vezes, dinheiro, mas não passaram disso por
lá, que eu saiba. - fui de encontro ao seu temor.
Quando saímos de carro da garagem do
prédio, houve a habitual demora de entrar no fluxo do tráfego, que é intenso
mesmo às 15h 30min. Nessa espera, vislumbrei alguns táxis que passaram sem
passageiros. Quando o marido da minha cunhada conseguiu a brecha para pôr o
carro no meio do tráfego, a minha própria irmã disse que o táxi logo a frente
estava vazio.
-E o que está adiante dele está também
vazio. - acrescentei.
-Carlinhos, lembrei que na primeira rua
à esquerda há um ponto de táxi. - disse o genro da minha irmã.
-Se não houver problemas para me deixar
lá...
-De jeito nenhum.
Um posto de gasolina na esquina
facilitava tudo, ele fez uma parada lá, saltei do carro já notando que havia
uns dez táxis à espera de clientes. Dirigi-me, claro, ao que ponteava a fila. O
taxista tinha cabelos grisalhos e fartos bigodes, beirava uns 70 anos de idade.
Abri a porta do seu veículo e anunciei, depois de pedir desculpas a todos os
meus professores de francês do Visconde de Cairu:
-Praça Mané.
-Praça Mané... - torturou a memória.
-Fica perto da sede universal da igreja
do bispo Macedo.
Ainda sofria nos “becos escuros da
velha cidade de traições”, como Machado de Assis se referiu à memória de um
compositor de polcas num dos seus mais célebres contos.
-A Praça onde aconteciam aquelas festas
juninas que varavam a madrugada.
-Ah, sim, é claro. Fui muito a essas
festas.
Depois de uma pausa, disse
entusiasticamente:
-Lá morou uma pessoa que era gente
finíssima.
-Quem?
-Aquele que era o dono do ponto.
-O Dudu?...
-Esse mesmo. Nós fomos amigos de
infância, amigos de o meu pai frequentar a casa dele.
A essas palavras. Tratei de ser
político e não tecer a menor crítica ao seu falecido amigão.
-Pena que mataram... sinto saudades
dele.
-Fizeram uma emboscada. Quando a
imprensa apareceu com aquelas perguntas, os moradores foram hostis com ela,
pois o Dudu era muito querido. - manifestei-me.
-Ele não se metia com ninguém.
-Ficava na dele. - parei nessa frase
para que ele pensasse que eu concordava inteiramente.
-Fui criado em Del Castilho, pelo
Cachambi. - informou-me.
-Eu criei raízes no Cachambi; morei nas
Ruas Cachambi, São Gabriel com a Americana, Chaves Pinheiro, Avenida Suburbana
na altura da barbearia do Fonseca. Há uns 20 anos moro na Praça Manet (pronunciei
certo o nome do pintor).
-O meu tio era um brigão e tanto,
quando ficava bêbado ninguém segurava, um perigo na mão.
-O Bira?- saquei da memória um dos
legendários brigões do bairro que, quando bebia e o seu pixaim ficava eriçado,
segundo testemunhas, todos saíam de perto.
-Bira?... - perdeu-se de novo,
machadianamente falando, nos becos escuros da memória.
-Bira era um dos seguranças daqueles
carnavais de meados da década de 60 no Cachambi.
-Meu tio também era segurança. Como
eram bons aqueles carnavais! Até escola de samba conceituada aparecia lá para
desfilar.
-Uma
vez desfilou os Unidos do Jacarezinho, que chegou a ser integrante do primeiro
grupo. Recordo-me de um negão do Jacarezinho, de quase dois metros, que pegou
uma faca para brigar com o Carlinhos Chamicha, que tinha 1,65 m de altura.
Carlinhos lhe disse que ia tirar a arma e enfiar no rabo dele. Só fez a metade
do que prometeu por caridade, talvez, embora, quando brigava, fosse cruel.
-Carlinhos Chamicha...
Minha Nossa! O taxista da ida esquecera-se
de ligar o taxímetro, este se esquece de parte do seu passado,
-A minha memória ficou abalada depois
que entrei no Salgado Filho desenganado. Não morri porque Papai do Céu achou
que não era a minha hora. - confessou.
Veio-me logo à mente o boxeador Éder
Jofre que, devido aos socos desferidos na sua cabeça, somados com a depressão
pela morte da mulher, vive com as filhas, atualmente, com lembranças fugazes da
sua heroica história. Recordei-me também do Bellini da Copa de 58,
diagnosticado com Mal de Alzheimer, que, após a sua morte, os especialistas estudaram
o seu cérebro, doado pela família, e constataram que, na verdade, tivera
encefalopatia traumática crônica provocada pelos golpes na cabeça que recebera
nos campos de futebol deste mundo.
-Foi pancada muito forte?- indaguei.
-Não; eu estava com diverticulite e a
besta do médico me tratou como se eu estivesse com infecção urinária. Meu
amigo, eu não morri na cirurgia por muita sorte, mas, dessa brincadeira, perdi
um pulmão e uma parte da minha memória.
Não expressou autopiedade e seguiu
adiante.
-Sujeito formidável era o Dudu.
-Ele era devoto de São Jorge. Nos dias
23 de abril, ele fazia uma festança que ia da alvorada, às seis da manhã, até a
noite.
-Eu sei muito bem da devoção do meu
amigo por São Jorge.
-Lá, na Praça Manet, os amigos dele
colocaram uma imagem do santo a cavalo matando o dragão, numa redoma, com uma
plaquinha com o retrato do Dudu.
Como ele já dobrava a esquina da Renoir
com Vlaminck, mostrei-lhe a imagem. Quando ele parou em frente a minha casa,
disse-lhe que a Praça melhorara muito.
-Qual o político que deu a melhora?
-Bem... não sei bem... são muitos. Há o
vereador Ferraz.
-Um canalha. - assustou-me com a sua
indignação.
-Conheço esse canalha desde anos e
anos, décadas, eu e um amigo. Esse amigo batalhou, a pedido dele, para
conseguir votos na eleição. Esse meu amigo promoveu eventos, suou sangue para
obter e obteve votos para o Ferraz se eleger.
Enquanto ele esbravejava, notei a
clássica imagem de São Jorge afixada no painel do seu táxi.
-Eleito, esse canalha evita esse meu amigo que, até hoje, sofre com essa
ingratidão.
Mais calmo, despediu-se de mim
dizendo-se feliz por rever a Praça.
Rumei para casa, certo que nenhuma
diverticulite o faria esquecer o canalha do Ferraz.
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