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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5114 Data: 23 de
maio de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XXXVII
CIGARRO - Quando eu e meu irmão Claudio entramos na fase
infantojuvenil, nosso pai tirou o maço de cigarro que carregava no bolso da
camisa, mostrou-nos e disse:
-Fumar pode, beber, não.
O meu pai tinha razões incontornáveis
para odiar a bebida: o alcoolismo de seu irmão. Porque trabalhavam juntos, pela
madrugada como revisores e eram vizinhos – durante um tempo ele morou, com a
mulher e a filha, no apartamento 102 da Rua Cachambi, ao lado do nosso, meu pai
tinha constrangimentos cotidianos com as suas bebedeiras.
Consequentemente, não admitia garrafa
alguma lá em casa que não fosse de refrigerante, a rigor, nem isso, pois
bebíamos mesmo mate, que ele mesmo preparava, e leite, CCPL ou Vigor, com café.
Por isso, eu não entendia por que, sempre que se gripava, encharcava o lenço de
álcool e o colocava sobre o nariz como os assaltantes do faroeste americano.
Quanto a nós, seus filhos, tínhamos de cheirar mesmo Vick Vaporub.
No que concerne ao cigarro, meu pai se
ajustava naquela observação do escritor Mark Twain: “Deixar de fumar é fácil,
eu já deixei umas cem vezes.” Para o meu pai, a facilidade estava em não tragar
a fumaça para dentro do organismo, estava em apenas puxar a fumaça e soprá-la
para fora, assim, o vício não o dominou, nem mesmo se submeteu ao feitiche de
portar um cigarro entre os dedos; pois, na verdade, ele o trazia entre os
lábios e incontáveis vezes eu vi cinza já encurvada de tão grande, na ponta de
cigarro, ou espanando a cinza que caíra sobre si, porque esquecia de fumá-lo
depois de aceso.
Bem, ele deu o sinal verde para mim e
para meu irmão, mas não o dinheiro para comprar um maço de Continental, nem
mesmo para um maço de Caporal Amarelinho, Liberty Ovais ou Mistura Fina, os
matarratos ??? da época. Meu irmão Claudio resolveu esse problema. Explico-me.
Fernando, o vizinho espanhol, apesar de ter uns 3 anos a mais do que eu, não
encontrou do seu pai a mesma
liberalidade do nosso. Para que não fosse surpreendido, sempre que
retornava da escola, escondia o seu maço de LS na caixa de gás do prédio. Um
dia, ao chegar à janela – morava no segundo andar – se deparou com o meu irmão,
sentado no telhado da fábrica EMPER soltando fumaças como uma chaminé.
Entusiasmou-se, logo, com mais uma traquinagem do meu irmão:
-Mamma! Mamma!... Venha ver o Claudio
fumando.
Depois que a Dona Maria saiu da janela,
meu irmão lhe mostrou o maço LS. Quando o nosso vizinho espanhol caiu em si,
quase caiu da janela de raiva.
-Vou foder-lhe a alma.
Cada ameaça era seguida de uma baforada
desafiadora do Claudio. A partir de então, Fernando tinha de procurar um
esconderijo para os seus cigarros tão seguro quanto o do tesouro espanhol.
Com 12/13 anos de idade, quando me
preparava para as provas de admissão a um colégio do governo, vi-me sozinho,
uma tarde, em casa e, melhor ainda, eu tinha uns trocados, 10 cruzeiros. Rumei
para o botequim da Rua Honório, esquina com a Rua Cachambi e pedi um maço de
cigarro Continental.
-Todo mundo só pede esse cigarro. - foi
a reação do vendedor que nunca esqueci.
Em 1960, o maço do Continental custava
Cr$ 4,20, segundo os arquivos internéticos, se eu estava mesmo 10 cruzeiros,
recebi troco que me garantia, mais tarde, outro maço, mas falemos do meu
primeiro.
Coloquei-o no bolso da camisa e voltei
para casa. Abri o maço, bati com ele na palma da mão, e três ou quatro cigarros
saíram pela metade para fora. Puxei um, acendi com um palito de fósforos e
fumei. Tossi com as primeiras baforadas, mas fui em frente. Sem esmorecer,
parti para o segundo. Como a minha mãe não chegava com os meus irmãos, passei
para o terceiro cigarro. Senti-me tonto e parei de fumar.
Por que a tonteira, a fumaçada, o
cheiro ruim, a tosse não me fizeram parar na primeira tentativa? Todos os meus
heróis da tela do Cinema Cachambi fumavam e agradavam as mulheres mais bonitas
do mundo, talvez, por isso, eu segui em frente como fumante.
Depois da primeira vez, tornei-me menos
açodado e obedeci a intervalos de uma hora, mais ou menos, entre um cigarro e
outro.
O vizinho espanhol, embora se
declarasse comunista, louvava as delícias dos cigarros americanos L&M e
Chesterfield. Imaginando que Cary Grant, Tyrone Power se tornavam irresistível
com eles entre os dedos, e não com mero Continental, nem mesmo com Minister, o
meu ciúme cresceu em intensidade. Porém, esse reconhecimento não tinha mais
valor para mim: eu já me tornara um tabagista viciado.
O cigarro estrangeiro que o Fernando
fez chegar até mim, gratuitamente, nada tinha a ver com os Estados Unidos, era
espanhol; filara ocultamente do tio ou do pai, não sei precisar. Caramba, nunca
pitei nada tão fedegoso do que aquilo, nem mesmo quando as moedas rareavam e eu
me via obrigado a comprar cigarros Misbella a varejo, traguei e soprei fumaça
mais fedorenta.
Fumei nos meus quatro anos de curso
ginasial sofrendo as consequências: apelidaram-me de Maconha e recebi uma
suspensão de cinco dias por ter sido surpreendido pelo diretor do colégio com a
boca no cigarro.
Com 16 anos de idade, cogitei largar o
vício. Meu pai me ajudou comprando para mim cigarros medicinais, assim eram
chamados porque (esse era o objetivo) de tão intragáveis levava o fumante à
repugnância pelo tabaco. Deixei de fumar... os cigarros medicinais, que mais me
pareceram aquele que o meu vizinho espanhol me dera anos atrás.
Nessa idade, 16 anos, eu me enquadrei
na mencionada frase do Mark Twain, mas pelo lado perverso, isto é, deixei de
fumar cem vezes, e cem vezes, sucumbi ao vício, diferentemente do meu pai, que,
como mencionei acima, jamais tragava.
Um dia – um médico de 81 anos de idade,
Maurício Campos de Medeiros, com um cigarro fumegando no cinzeiro da sua mesa,
disse-me para eu parar de fumar e eu parei definitivamente. Estava com 17 anos
de idade.
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