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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5129 Data: 18 de
junho de 2015
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MINIDICIONÁRIO
AUTOBIOGRÁFICO – XLI
ESMOLA – Há uma cena do filme “Umberto D” em que o
velho aposentado, no meio da desolação da Itália pós-Segunda Guerra Mundial,
sem um tostão no bolso, estica o braço com a mão espalmada para cima e, quando
um transeunte faz menção de lhe dar uma esmola, ele vira rapidamente a mão, como se quisesse saber se pingos de chuva caiam. Assisti a essa fita do Vitorio De Sica no “Cinema
de Arte” da TV Excelsior, no início da década de 60, e me recordo de quase todo
o enredo, principalmente, dessa cena, que julgo uma das mais significativas da
história cinematográfica. A película –
soube depois – foi uma homenagem do grande cineasta ao seu pai.
É duro um trabalhador ter, um dia, de
se tornar um pedinte, no caso do Umberto D, era impossível.
Lembro-me de um professor marxista da
“História do Pensamento Econômico”, que, abordando as reivindicações dos
operários no fim do século XIX, se referiu à Encíclica Rerum Novaram em
que o Papa Leão XIII nos persuade a sermos caritativos, esmoleres, e comentou
com deboche:
-Como dizia Ademar de Barros, leão não
é 13, é 16.
Rogar por esmola, só em último caso, ou
nem isso, o suicídio vem antes, como pensou Umberto D, que só não se matou
porque seu inseparável companheiro Filk, um vira-latas, o impediu.
Não me canso de citar a maior das
vitórias, para mim, do pugilista James Braddock, que se tornaria campeão mundial
dos pesos pesados. Quando foi bafejado pela miséria, na grande depressão, com
mulher e filhos para sustentar, além de estar com a mão quebrada, o que
exacerbava o seu sofrimento no trabalho de estivador, recorreu à política assistencialista
do Presidente Roosevelt. Após alguns meses, a sorte virou e vieram as vitórias
com o seu retorno ao boxe; ele entrou, então, na fila e devolveu o dinheiro que
o governo lhe dera. Um homem de fibra não recebe esmolas, aquilo tinha sido
para ele um empréstimo.
O Papa Leão XIII me excomungaria se
soubesse a minha reação com os pedintes. Na minha infância e pré-adolescência,
não me recordo do meu pai ou da minha mãe, quando saía com eles, pingando
tostões nas canecas dos mendigos, talvez esse gesto desfalcasse o dinheiro da
passagem do bonde ou do ônibus na volta para casa. Também não me lembro de
ninguém me pedindo dinheiro na minha adolescência, mas seria perda de tempo,
pois minha receita mal dava para pagar o maço de cigarros Continental e, muitas
vezes, percorria uns quatro quilômetros a pé até o Visconde de Cairu para
poupar os centavos do bonde Cachambi.
Na minha fase adulta, topei com todos
os tipos de pedintes. Os piores são aqueles que agem como os cabos eleitorais
que praticam o corpo-a-corpo para obter votos para os seus candidatos. Certa
vez, desci as cinco rampas da estação do metrô de Maria da Graça com um cracudo
colado em mim pedindo dinheiro. Talvez a sacola colorida da Lidador, com uma
garrafa de vinho, que eu carregava, lhe desse a impressão que eu era rico,
tamanha foi a insistência. Depois de uns cinco não, rotundos, mas ineficazes,
cogitei pegar a garrafa pelo gargalo e quebrá-la na sua cabeça. Não foi
preciso, vinha um cidadão em sentido contrário, pela rampa e o cracudo se
desgrudou de mim e foi perturbá-lo.
O fator surpresa, alguns anos atrás,
quebrou a minha intolerância com os pedintes. Eu cruzava o Jardim do Méier,
quando surgiu à minha frente, um sujeito que parecia Richard Gere no filme
“Time Out of Mind”. Sem tempo para reagir, tirei umas notas de cruzeiro do
bolso e lhe dei. Quando contei esse caso aos amigos, eles, que me conheciam
bem, estranharam. “Se ele não era mendigo, o meu dinheiro pagou o seu excelente
papel de ator.” - foi a minha justificativa. No caso do Richard Gere, atuando
como sem-teto, ele recebeu de uma senhora, que não o reconheceu, um prato de
comida. Sem sair do personagem, o ator agradeceu a caridade.
Aqui, no Rio de Janeiro, conhecidos
meus que deram pratos de comida para mendigos, quase os receberam de volta na
cabeça, como nos filmes do gênero pastelão. Houve uma exceção em Cabo Frio,
apareceram três jovens, na nossa casa e meu cunhado os chamou para jantar; eles
rasparam o prato.
Enfim, há toda uma fauna de pedintes
que seria cansativo eu enumerar aqui, pois todas as pessoas que saem às ruas
brasileiras conhecem à exaustão.
Depois da Copa do Mundo de 2014, essa
fauna se internacionalizou. Duas ou três vezes, viajando de metrô por volta do
meio-dia, me surpreendi com trios de mocinhas latino-americanas dirigindo-se
aos passageiros da maneira mais educada possível. Em seguida, faziam uma
apresentação artística de uns cinco minutos com canto e instrumentos musicais.
Encerrada a exibição (elas estavam bem ensaiadas), diziam que um sorriso nosso
já era o pagamento para elas, mas se quisessem ajudar com algumas “platas”...
Será que as mocinhas precisavam de dinheiro para retornar aos seus países de
origem? Esta pergunta ficava só alguns segundos na minha mente, eu enfiava a
mão no bolso e ouvia um “muchas gracias”. Eu não dava esmolas, eu pagava o
“couvert” artístico.
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