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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4926 Data: 17 de agosto de
2014
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136ª VISITA À
MINHA CASA
-Koellreutter... Meu irmão o conheceu
vivo, eu o conheço morto.
-Seu irmão foi meu aluno?
-Não, ele é advogado.
-Passei por umas pendengas jurídicas,
questões familiares e...
-Meu irmão tem como ídolo um ex-aluno
seu. - cortei-o, pois o senti acabrunhado.
-Qual deles?
-Antônio Carlos Jobim.
-Ah, sim. Quando me exilei no Brasil,
vindo da Alemanha, me alojei na pensão da mãe do Tom Jobim.
-Por que você trocou a Alemanha pelo
Brasil?
-Não troquei, fui trocado.
-Foi tocado para o Brasil.- não resisti
ao trocadilho.
-Quando Hitler assumiu o poder, eu
estava com 18 anos de idade.
-A História o pegou pela garganta, como
diria Arnold Toynbee.
-Minha família idolatrava aquele maluco
de bigodinho e eu, no contraponto, apaixonei-me por uma judia.
-Sua família o deserdou?
-Pior, meus pais me denunciaram à
Gestapo.
-Foi o paroxismo da insensibilidade. -
reagi com estupor.
-Só me restou a minha judia e vim para
este país.
-Mesmo com pouco mais de 20 anos de
idade, você já possuía uma considerável bagagem musical pelo pouco que sei.
-Eu fiz um curso com Paul Hindemith...
-Um dos mais destacados compositores do
século XX.
-E o maestro Hermann Scherchen já havia
me introduzido na música de vanguarda.
-Sei; ele também fugiu do nazismo e
rumou para a Suíça.
-Eu tocava flauta em concertos, na
Alemanha, com algum sucesso.
-E como foram os seus primeiros anos no
Brasil, Koellreutter?
-Em 1938, passei a ensinar a minha
matéria no Conservatório de Música do Rio de Janeiro.
-Certamente, conheceu os grandes nomes
da música brasileira?
-Tornei-me amigo do Villa-Lobos e do
Mário de Andrade, este, um estudioso da música nativa.
-A Orquestra Sinfônica Brasileira,
fundada em 1940, que teve como primeiro regente Eugen Szenkar, húngaro que
também escapou do nazismo, contou, certamente, com a sua participação.
-Fui um dos fundadores da Orquestra
Sinfônica Brasileira e o seu primeiro flautista,
-Atuou como flautista, nos concertos o
que já fizera na Alemanha. - comentei.
-Eu já estava bem entranhado nas terras
do Brasil, naturalizei-me em 1948.
-Já se sentia bem integrado a este país.
- assinalei.
-Desde que cá desembarquei, em 1939, eu
fundei o “Grupo Música Viva”.
-O movimento “música Viva” foi marcante
na nossa história musical. - pontuei.
-Na minha vida, eu garanto que foi
marcante,
-Você era o líder do “Música Viva” mesmo
com participantes renomados como Villa-Lobos.
-Villa-Lobos era o patrono.
E prosseguiu didaticamente:
-Nos primeiros anos, o Grupo teve como
participantes personalidades do meio musical do Rio de Janeiro e também um
jovem aluno meu que se salientaria como compositor, Cláudio Santoro.
-E o que realizava o “Grupo Música
Viva”?
-Organizávamos concertos, publicávamos
partituras, editávamos o “Boletim Música Viva”, e outras atividades que ora não
me vêm à cabeça.
-Além de Cláudio Santoro, outros alunos
seus de futuro se tornaram integrantes do Grupo.
-Guerra Peixe, Edino Krieger , Eunice
Catunda, vieram a partir de 1944 e houve um confronto entre aqueles que eram
adeptos das tradições enraizadas no meio musical e os vanguardistas.
-E o “Grupo Música Viva” implodiu?
-Durou ainda mais 4 anos, mas em 1948,
houve a cisão.
-Por causa da cizânia entre modernos e
tradicionalistas, Koellreutter?
-A implosão foi provocada pelo fato de
os jovens compositores Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Eunice Catunda, sendo
participantes ou membros do Partido Comunista Brasileiro passarem a seguir a
estética do realismo socialista. Não havia como eu concordar com aquilo.
-Para você, foi mais uma página virada
na sua vida.
-Em 1952, participei da fundação da
Escola Livre de Música de São Paulo. Dois anos após, fundei a Escola de Música
da Universidade Federal da Bahia em Salvador.
-E a sua volta para a Alemanha dos seus
pais não foi considerada por você com o fim da guerra e a derrocada de Hitler?
-Recebi um convite do Instituto Goethe
para trabalhar no Alemanha, na Itália e na Índia e, por isso, vivi fora do
Brasil de 1965 a 1969.
-Mas, antes, já havia saído do nosso
país para receber prêmios internacionais.
-Em 1962, fui agraciado com o Prêmio
Ford.
-Você trabalhou na Índia. Como foi lidar
com uma música diametralmente oposta à nossa?
E fiz a ressalva antes da sua resposta:
-É verdade que Debussy bebeu na fonte
javanesa para revolucionar, magistralmente, a harmonia da técnica musical
europeia.
-Eu não estive só na Índia; passei por
Sri Lanka, pelo Japão, pela Coreia do sul.
-Mas demorou mais na Índia.
-É verdade. Na índia, conheci a música
microtonal e a utilizei em várias das minhas composições.
-Música microtonal... - murmurei
inaudivelmente para ocultar a minha ignorância.
-Na Índia, inteirei-me do hinduísmo e,
no Japão, do zen-budismo, que me influenciaram na criação da estética do
impreciso e do paradoxal.
Ouvia-o aparvalhado.
-Então, concebi o Diagrama K – de
Koellreutter – ou o Diagrama Wu-li. Vou mostrá-lo através de um desenho. -
disse em tom professoral.
-Não,
não há necessidade.
-Meus alunos, de um modo geral, também
não se mostraram interessados. Pena!...
-Você introduziu o dodecafonismo na
didática musical brasileira desde que aqui chegou.
Aborrecia-o ser mais citado por isso do
que por outros feitos seus.
-Nas minhas composições, utilizei o
serialismo, a tecnologia eletrônica, a harmonia acústica que aprendi com
Hindemith e adaptei à música brasileira com o objetivo de criar um novo estilo
de composição.
-Total liberdade de pensamento. -
atalhei.
-Inventar, inventar. Essa variedade toda
se baseava na liberdade de expressão. Isso eu ensinei aos meus alunos: a busca
cada vez mais intensa da sua identidade criativa, do seu caminho.
-Lembra-se do nome dos seus alunos?
Sem torturar muito a memória passou a
citar alguns deles:
-Marlos Nobre, Tim Rescala, Tomzé,
Caetano Veloso, Djalma Corrêa. Moacir Santos, Clara Sverner, Isaac
Karabtchevsky, Júlio Medalha, Diogo Pacheco, Guerra Peixe, Edino Krieger...
estes dois últimos já foram citados.
-E Antônio Carlos Jobim?
-Ele estava com 13 anos de idade quando
seus pais me contrataram para lhe ensinar piano e harmonia.
-Ele foi longe.
-E eu tenho de ir para mais longe ainda.
- disse-me antes de partir.
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