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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

2506 - a biografia não-autorizada do Biscoito



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4306                                Data: 03  de novembro  de 2013
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ALMOÇO DO TRIO
PARTE II – O PRATO PRINCIPAL

Elio se aproximou de nós com a sua placitude habitual.
-Desculpem-me o atraso.
-Ora, Elio. - disse o Luca achando graça de tanta cerimônia.
-Telefonei três vezes para o Carlos.
Apesar de a Brasserie não ser barulhenta como a grande maioria dos restaurantes, nenhum som do meu celular foi ouvido; tirei-o do bolso da calça e constatei que havia três chamadas perdidas.
-Se eu tivesse colocado para vibrar... Meu celular, vez ou outra me prega essa peça.
-Vocês já pediram?
-Elio, o patê com esses pães são ótimos. - garantiu o Luca.
O garçom, que já chegara, ouviu o Elio pedir mais pães.
-Chope também?
-Água mineral.
O afastamento do trabalhador da casa, franqueou o momento para  o Luca entrar com o assunto das biografias não autorizadas.
-Não, Luca, eu não assisti ao “Roda Viva”.
-O entrevistado, que escreveu a biografia do Roberto Carlos...
-Paulo César de Araújo. - interrompeu-o o Elio ao perceber que ele esquecera o nome.
-Isso mesmo, Paulo César Araújo foi o entrevistado.
E prosseguiu:
-O Roberto Carlos não percebeu que é rejeitado pela elite. Essa biografia vem até ao seu favor. Mas o Roberto Carlos, acreditando-se rei, de fato, julgou-se acima de tudo. O Alberto Dines, quando falou...
-Alberto Dines foi um dos entrevistadores? - cortei, pensando que, na minha época de estagiário do Jornal do Brasil, em 1977, ele era considerado o cabeça desse jornal.
Depois de confirmar, reiniciou a sua narrativa.
-Alberto Dines falou que as canções de Roberto Carlos têm letras pueris, melodias pouco inspiradas, que não é rei de nada.
Bem, caros leitores do Biscoito Molhado, as palavras do meu amigo de décadas não foram justamente estas, como as do Alberto Dines, talvez, não sejam estritamente as que o Luca reproduzia, mas o sentido era o mesmo.
-Sobre essa história de lentidão da justiça, de que o biografado levará um tempo enorme para se ressarcir das inverdades do biógrafo, o ...
-Paulo César Araújo. - lembrou-lhe o Elio.
-O Paulo César Araújo afirmou que, vinte dias depois do lançamento do livro, ele e o editor já estavam diante do juiz que os ameaçava com 500 mil reais por dia caso o livro fosse comercializado. - enfatizou.
-Esse grupo “Procure Saber”, que é contra as biografias não autorizadas, se baseia nos artigos 20 e 21 do Código Civil que, na verdade, são inconstitucionais. - interveio o Elio com considerações jurídicas.
-O João Máximo é um dos mais conceituados jornalistas de hoje, no entanto, a biografia que redigiu sobre o Noel Rosa foi brecada pelos sobrinhos do compositor. É o fim da picada. - manifestei-me.
-O biógrafo do Roberto Carlos afirmou que teve uma trabalheira dos diabos,  que entrevistou centenas de pessoas... E o Chico Buarque disse que não foi entrevistado... Ele mostrou logo fotos que comprovam essa entrevista.
-O Chico Buarque disse que esqueceu.
-No Roda Viva, afirmaram que a entrevista que ele deu na Última Hora, sem o Samuel Wainer, jornal já nas mãos da ditadura, e que o Chico nega, também foi dada.
E completou enfaticamente o Luca:
-Mas eu não arredo um milímetro sequer da minha admiração pela obra do Chico Buarque.
Estranhei, creio que o Elio também, a veemência do nosso amigo, pois ninguém colocava em dúvida o talento artístico dele, nem mesmo o Millor Fernandes, quando o acusava de fazer da sua ideologia um investimento para ganhar dinheiro.
A chegada dos pratos solicitados por nós, peixe e carne, descontraiu a nossa conversação.
-Caramba, como este peixe está saboroso! - não me contive.
-Esta carne é muito gostosa. -seguiu-me o Luca nos elogios.
-Este restaurante é muito bom, - manifestou-se o Elio, satisfeito com a aprovação da sua escolha.
Luca, como fizera comigo, passou-lhe o cardápio do restaurante mais antigo do mundo em que sua filha estivera.
-Também passei por lá, quando fui à Espanha. - informou-nos o viajado Elio.
Chegou a vez do meu retrato da escola primária.
-Você é este?...- apontou.
-Não, sou o do lado desse garoto.
Imaginando que me achasse muito moreno, antecipei-me:
-O brasileiro nasce preto e morre branco.
E acrescentei:
-Há fotografias de Machado de Assis, jovem, em que ele era mulato, mas as que foram feitas quando estava velho, ele já é branco.
-É verdade. - confirmaram.
-Elio, você não sabe o que aconteceu. - agitou-se.
-O que foi? - despertaram a curiosidade dele e a minha.
-No torneio de tênis de mesa, disseram-me que lá estava um “rankeado”, de nome Isaque.
E o Luca contou que, como admirador do povo judeu e dos grandes praticantes desse esporte, aproximou-se dele efusivamente chamando-o de Isaque.
-Eu não sou Isaque, sou Ibrahim.
-Caramba! - espantou-se o Elio.
-Pregaram-lhe uma pegadinha? - perguntei com tonalidade de afirmação.
Elio mostrou-nos, então, a semelhança entre nomes árabes e judeus, como Abraão e Ibrahim.
-Na verdade, são povos irmãos.
-Ele me massacrou no tênis de mesa. Eu, que pelo menos consigo vencer um set, quando sou derrotado, perdi de zero. Será que se ofendeu pela troca de nome?... Não, não foi isso, ele joga muito bem, mesmo.
A nossa conversa que já fora interrompida com duas vibrações do celular do Elio, atendido com pedidos de desculpas, vibrou mais uma vez. Era a sua mãe. Enquanto falava com ela, meu pensamento ia para os ensinamentos de História que Dona Sarita passou para o filho que, assim, se mostra capacitado para as viagens que faz na máquina do tempo, repercutidas nas páginas deste periódico.
-Desculpem-me. - pediu, logo que desligou.
-O que é isso?!... - protestamos a cerimônia exagerada.
Na hora da vinda da conta, Elio nos falou dos sortilégios da sorte.
Já na rua, Luca nos mostrou o livro que comprara no sebo ao lado: “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Elio se reportou, então, ao livro que lia sobre o Rio de Janeiro do século XVI.  Mostrando que assimilara bem a leitura, e que nos achávamos próximos ao Largo do Teles, discorreu sobre essas ruas e construções do Rio de Janeiro no tempo colonial.
E, falando da nossa cidade, se encerrou o nosso almoço com toque afrancesado.





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