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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5153 Data: 23 de
julho de 2015
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121ª VISITA À MINHA CASA
-Tudo bem?- Perguntei ao Jorge Luís
Borges quando me deparei com ele na sala da minha casa.
-Sim, principalmente porque, com a
minha morte, recobrei a visão.
-Sempre que o seu nome chega até mim,
eu logo me lembro de que a sua acuidade visual se esvaía paulatinamente até
ir-se de vez.
-Os poetas, como os cegos, podem ver no
escuro.
-Certamente, a qualidade das suas obras
durou até a sua morte em 1986, a dois meses de você completar 87 anos de idade.
Notei, então, que os seus olhos
percorriam toda a sala e pareciam varar as paredes.
-Procura alguma coisa, Borges?
-A biblioteca.
-A minha biblioteca tem tantos livros
quanto à Biblioteca de Alexandria depois do incêndio.
-Aquele incêndio foi o ato mais
criminoso da história.
-A biblioteca mais próxima daqui, que
poderia agradá-lo, era a do pai de uma amiga minha, a Rosa Grieco; 45 mil
livros, porém, foi desfeita depois da morte dele.
-Você deveria romper a amizade com essa
moça.
-Ela não teve a mínima culpa e sim seus
irmãos e suas irmãs, sendo uma delas denominada pela Rosa de irmã-cupim. Eles
estavam mais interessados na pecúnia. Rosa conservaria todos os livros e
acrescentaria outros; pois completou, em 2015, 80 anos de leitura, começou aos
4.
-Quanto a enxergar no escuro, não havia
problemas, por eu ser poeta, e, como leitor, sempre houve pessoas que liam para
mim.
-O bibliófilo e escritor Umberto Eco o
homenageou no seu romance “Em Nome da Rosa” com um personagem. Este se chama Jorge de Burgo e era cego, além
de venerar a biblioteca da igreja, de que era guardião, naquele cenário
medieval.
-Ele se inspirou no meu conto “A
Biblioteca de Babel”, que continha todos os livros do mundo.
-É verdade que Jorge de Burgos é um dos
vilões da história. Não sei se você tomou isso como homenagem.
-Sim, a citação é válida. Soube que o
Umberto Eco foi eleito por uma revista dos Estados Unidos o segundo maior
intelectual do mundo, perdendo para Noam Chomsky.
-Este é americano.
-Como é o paraíso, Jorge Luís Borges?
Você havia escrito que sempre imaginou o paraíso como uma espécie de livraria.
-E é, se fosse o que muitos imaginam,
anjos tocando harpa, seria um tédio infernal.
-Confirmar-se-ia aquela frase do Mark Twain:
“Prefiro o inferno pelas companhias e o paraíso pelo clima.”
-Como o paraíso é igual a uma livraria,
o Mark Twain está sempre contente lá em cima, até parou de inventar aquelas
estrovengas que o levaram à falência quando vivo, salvou-o a literatura, que
era a sua verdadeira vocação.
-Tinha de haver livros mesmo no
paraíso, não é, Borges?
Nesse instante, a sua expressão se
tornou reflexiva.
-Dos diversos instrumentos do homem, o
mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O
microscópio, o telescópio são extensões da sua vista; telefone é extensão da
sua voz; depois, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro
é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
-Borges, apesar de você ter nascido em
Buenos Aires e vivido parte da sua infância na Argentina, você aprendeu a ler
em inglês e depois, sim, em castelhano?
-Sim; a minha avó materna era inglesa e
éramos muito unidos. Com sete anos, escrevi um resumo da literatura grega no
idioma de Shakespeare. Um ano antes, eu já havia dito ao meu pai que seria
escritor.
-Você foi bem precoce.
-Com oito anos, escrevi meu primeiro
conto, “La Visera Fatal”, baseado num episódio de “Dom Quixote”, de Cervantes,
livro que me fascinou durante toda a minha vida. Aos nove anos, verti do inglês
para o castelhano “O Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde.
-Quando você foi estudar na Suíça?
-Em 1914, quando vieram os indícios de
uma cegueira irreversível. Fomos todos para a Europa e, em Genebra, eu fiz o
bacharelado de 1914 a 1918, período da 1ª Grande Guerra Mundial.
-A cegueira se manifestou tão cedo. -
murmurei penalizado.
-Uma resenha de três livros espanhóis,
para um jornal de Genebra, foi a minha primeira publicação. Eu já escrevia
também em francês.
-E depois de formado?
-Fomos para a Espanha, em 1919 e lá, me
ocupei em escrever poemas e manifestos.
-Quando voltou para a Argentina?
-Em 1921, quando Buenos Aires vivia a
efervescência dos anos 20. Escrevi o meu primeiro livro de poema “Fervor em Buenos
Aires”, publicado em 1923 e segui escrevendo.
A crítica diz que você criou um novo
tipo de regionalismo ao acrescentar uma visão metafísica.
-Durante um tempo foi assim, depois,
senti-me mais realizado como autor especulando sobre a narrativa fantástica.
-Em 1937, você foi nomeado diretor da Biblioteca
Pública Nacional.
-Foi meu primeiro e único emprego.
Fiquei lá durante nove anos.
-Por que saiu se estava tão próximo de
dezenas, centenas de milhares de livro?
-Porque não me agradava a tendência da
Argentina pelo fascismo. As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras
fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade, mas o mais abominável
é que elas fomentam a idiotia.
-E o amor?
-Conheci, primeiramente, Estela Canto.
Eu idealizava as mulheres, elas eram Dulcineias para mim. Porém, Estela era
moderna e liberada para a época, quando a pedi em casamento, ela me respondeu
que não poderíamos casar sem antes dormir juntos. Senti-me chocado e
desapareci.
-Ela também escrevia?
-Escreveu um livro de memórias “Borges
à Contraluz”. Mas esse caso eu contei na minha autobiografia.
-Você se casou muito tarde.
-Em 1967, com 68 anos de idade, eu me
casei com uma amiga de infância, Elsa Astete. O casamento durou três anos,
quando fugi de casa sem coragem de declarar o rompimento da nossa união.
-Mas houve um segundo casamento?
-Quando eu estava com 82 anos de idade,
eu me casei com uma ex-aluna de origem nipônica, chamava-se Kodama. Ela lia e
redigia o que eu ditava. Era, acima de tudo, a minha secretária. Herdou os meus
direitos autorais quando morri. Muito justo.
-Antes, quem lia e redigia o que você
ditava?
-Com 50 anos, eu já havia perdido
parcialmente a visão. Quando a cegueira se tornou completa, mamãe redigiu o que
eu ditava e leu para mim. Ela faleceu em 1975, quando eu contava 76 anos de
idade.
-Você não se desesperava ao extremo?
-Em 1983, no meu relato “Agosto 25,
1983”, publicado no jornal “La Nación”, anunciei a data do meu suicídio. Quando
me cobraram o suicídio, eu respondi que a covardia me deteve.
Procurei descontraí-lo.
-Você escreveu letras para tangos e
milongas comparáveis, em primor, aos seus poemas.
-Coloquei letra até num tango de Astor
Piazzolla.
-Que compunha tangos sofisticados para
o gosto popular. - acrescentei.
-O gosto popular colocou aquela
desgraça do Perón no poder.
-Como você sempre se sentiu, Borges?
-Embora eu escrevesse muito, eu me
sentia mais leitor do que escritor. Bem, hora de ir-me.
-Mas temos tanto a falar das suas obras
literárias.
Partiu, deixando-me com a sensação de
que ficaria mais tempo se eu tivesse uma biblioteca comparável a do Agripino
Grieco.
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