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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5138 Data: 02 de
julho de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLIII
PROVA (02) – Com o meu desempenho no concurso de admissão de 1960
ao Colégio Militar, parecia que voltava à turma 1 da Escola 9-10 Manoel Bomfim.
Antes, pensando que eu dormia, meu pai dizia, com a voz irritadiça, para a
minha mãe, que não tinha dinheiro para pagar uma escola particular. Como toda
criança, eu me senti culpado por um erro que não era meu e continuei, na cama,
de olhos fechados. Trabalhando em não sei quantos jornais, voltando do trabalho
de madrugada, ele conseguiu alguns cruzeiros e pagou um explicador não só pra
mim como também para a minha irmã.
O explicador era o Seu Alcyr (assim o
chamávamos), que dava aulas de matemática no Colégio Pedro II e na sua casa.
Ele morava na Rua Rocha Pitta, com os pais, a esposa e o filho bebê, a menos de
800 metros de nós, assim, eu e minha irmã íamos da Rua Cachambi até lá a pé no
horário vespertino.
As aulas eram ministradas numa
dependência anexa a casa, de tamanho razoável, dividida em duas salas; numa,
estavam os alunos que se preparavam para os concursos de admissão aos colégios
públicos; na outra, aqueles que já estudavam no ginásio ou no científico, mas
necessitavam de um reforço na matéria em que o Seu Alcyr era professor.
Ajudava-o a encantadora Olinda,
normalista de 17 anos, que estava no último ano do Instituto de Educação
Carmela Dutra, que, assim, se preparava para ser professora. Ficou combinado
assim: ela nos ensinava Português, um pouco de História, e ele, vindo do Pedro
II, onde ficava a maior parte do tempo, e da outra sala, Matemática.
Havia notas? Não, porque não fazíamos
provas; o método era outro: tanto a Olinda quanto ele, principalmente ela, nos
davam exercícios para fazer e depois, nos mostravam onde erramos.
No segundo semestre, com a proximidade
das provas, eu passei para o horário integral e a minha mensalidade subiu de
500 para 1000 cruzeiros. Era o que dava no orçamento, a minha irmã não pôde
colher os frutos do horário integral e sentiu, certamente, o gosto da
inferioridade que a sociedade relega às mulheres.
Mas não foi fácil frequentar as aulas
da manhã. Olinda estudava nesse turno no Carmela Dutra e, assim, a garotada
ficava inteiramente entregue ao Seu Alcyr, que não primava pela paciência. A
sua prática pedagógica não incluía a palmatória e milhos nos joelhos e sim um
tapa de mão aberta na nuca que ele mesmo chamava de estalo.
Tinha as suas idiossincrasias; não
suportava gíria. Com ele, 1gíria=1 estalo. Palavrão?... Não sei responder, pois
nenhum aluno seu ousou dizer um nome feio, mas imagino que, em vez de estalo, o
castigo seria um direto no queixo como aqueles desferidos pelo Éder Jofre.
As garotas estavam isentas de receber
estalos – algum privilégio as mulheres tinham de ter. Recordo-me de uma delas,
que entraria para o Pedro II, depois de ter malogrado nas provas do Visconde de
Cairu, enfrentando a ira do professor. Quando ele a chamou de burra, ela
replicou de imediato: “Sou burra porque sou sua aluna”. Não houve estalo, ele
teve de engolir o desaforo junto com o catarro da sua gripe crônica.
Eu não diria que os estalos que os meus
colegas levavam, às vezes em série, doíam em mim, mas a empatia era acentuada.
Eu ficava mortificado com a choradeira deles, embora alguns aguentassem firmes
as pancadas, mostrando-se durões. Resumindo: eu morria de medo dos estalos. Ele
gostava de mim, seu pai era amigo da aeronáutica do Tio Eduardo, marido da irmã
mais velha da minha mãe, mas eu não me sentia seguro: era como Dâmocles, não com
uma espada, mas com uma espalmada mão sobre a minha cabeça.
Uma manhã, ele se pôs a nos ensinar as
preposições. Como o ensino da língua portuguesa não era a sua especialidade, a
sua didática foi meio capenga e ele perdeu a paciência:
“São dezessete preposições, amanhã,
vocês vão me dizer todas elas, cada erro é um estalo.”
Para mim, era como se eu fosse ser
submetido a uma prova desde aquela em que escrevi “incendiadez” como
aumentativo de incêndio. Mais eu tinha uma alternativa: faltar e, pela primeira
e única vez no ano, faltei, mesmo tendo decorado todas as dezessete preposições
– ainda hoje, cito todas elas como se estivesse ainda sob a ameaça de tapas na
nuca. Não fui o único ausente, apenas um colega da turma compareceu e jogou na
nossa cara, durante um tempo, a sua coragem e a nossa covardia.
A uns dois meses do início dos
concursos das escolas públicas, começaram a nos ensinar Geografia e mais um
pouco de História, que, ainda assim, ficaram muito aquém do peso que Seu Alcyr,
Matemática, e a Olinda, Português, deram a essas duas matérias. Mas houve um
critério para isso; em alguns concursos, português e matemática eliminavam.
O primeiro colégio público de renome,
em 1961, a abrir as inscrições foi o Visconde de Cairu e lá foi a minha mãe,
conduzindo-me pela mão, colocar-me entre os milhares de candidatos. Quando vi
sobre um balcão uma placa onde se lia 70 vagas, fiquei sobressaltado.
A primeira prova era de Português,
considerada a mais importante de todas. Os candidatos foram espalhados por
diversos educandários. Assim, fui para o Colégio Rio Grande do Sul, no Engenho
de Dentro, prestar, quase um ano depois, a minha primeira prova depois do
fracasso no Colégio Militar. De volta para casa, no bonde lotado de candidatos,
minha mãe me perguntou, como todas as mães naquela condução, como fora a prova
e eu respondi: difícil. “Mas todos estão dizendo que foi fácil” - retrucou. A
minha nota foi 6 e eu fui para uma segunda prova de português, que seria de
redação e de interpretação de textos, já que a primeira foi basicamente sobre
gramática. A minha nota foi 9 e eu fiquei com média 7,5.
Com a prova de Matemática, veio um
chorrilho de zero. Mesmo tendo estudado com um professor de Matemática do Pedro
II, tirei 5 que, naquele contexto, foi uma nota muito boa. A sorte de muitos
foi o fato de ela não ser eliminatória, se não, uns 60% ficariam no caminho. Na
prova de História, senti falta de mais estudos na casa do Seu Alcyr e a minha
nota foi 6. Saí-me pior em Geografia com uma vergonhosa nota 4. Recordo-me
perfeitamente que peguei o Diário de Notícias do meu pai, abri na página dos
resultados dos exames do Visconde de Cairu e procurei uma nota abaixo de 4 em Geografia,
não encontrei.
Bem, eu havia passado, mas as minhas
notas em Geografia e História me tirariam, com toda certeza, das 70 vagas. Como
o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, recém-empossado, estendeu
generosamente o número de vagas, eu já tinha um colégio público para cursar o
ginásio.
A minha mãe se esqueceu do Colégio
Militar, deu-se por satisfeita com o meu primeiro êxito. Além da aura de bom
ensino, que pairava sobre o Visconde de Cairu, o colégio não ficava longe; para
ela seria apenas pegar o bonde Cachambi e me levar até lá nos dias de
aula.
Errata: não é Instituto de Educação Carmela Dutra, e sim Escola Normal Carmela Dutra.
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