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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5136 Data: 29 de
junho de 2015
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SABADOIDO IDA E VOLTA
PARTE I
Daniel nem passara ainda primeira marcha
no seu carro, no estacionamento do posto de gasolina defronte à sua casa,
quando o celular tocou e ele atendeu;
-Carlão, a minha mãe disse que você
esqueceu o saco de tangerina.
-Cacete! - depois de me maldizer,
voltei-me para ele.
-Como soube se ainda está no
supermercado?
-Ela havia ligado para o velho.
-A sorte atenuou aquele contratempo; o sinal
do trânsito estava fechado e o tempo foi suficiente para eu saltar, correr até
o portão, onde o meu irmão já me aguardava com o saco de tangerina na mão e
retornar ao banco do carona.
-Diz a verdade, Daniel, eu parecia o
Usain Bolt.
-Se estivéssemos em alguns sinais que há
por aí, daria tempo de você entrar em casa, chupar umas cinco tangerinas e
voltar para o carro em passos de tartaruga.
-Como não estamos, rumo à primeira
parada: a Praça Manet, onde eu vou saltar.
-A segunda parada. - corrigiu-me.
Duas horas e meia antes, alargando as passadas
para atravessar a Rua Cachambi, meio desequilibrado pelo peso de uma dúzia de
frutas parrudas que eu comprara na barraca da Rua Itamaracá, tive a impressão
que a casa do meu sobrinho fora transformada numa ilha cercada de tapumes de
obra por todos os lados. Acheguei-me e vi que deixaram um caminho de tábuas, de
pouco mais de um metro de largura, que ia do portão até a parte da calçada
próxima do meio-fio.
-Pensei que teria de saltar obstáculos
como os atletas que treinam para as olimpíadas. - disse ao Cláudio quando ele
franqueou o portão para eu entrar.
Na cozinha do Sabadoido, deparei-me
Daniel, terminando o café da manhã, vestido com um conjunto de moleton todo
verde.
-Passou a torcer pelo Palmeiras? -
brinquei.
-Corro o risco de passar por torcedor da
Mancha Verde, mas é o jeito; só se vê gente vestida de arco-íris.
A Gina, que se aproximava, entrou no
diálogo.
-Você já viu no Facebook, Carlinhos?
Tudo ficou vestido nas cores do arco-íris festejando a legalização do casamento
gay nos Estados Unidos.
-Deixe-me ver se a sua roupa está, hoje,
muito colorida, Carlão. - aproximou-se de mim com uma lupa imaginária.
-Daniel, com este frio, eu só procurei o
que mais me agasalhasse sem me importar com cores.
-Na América Latina, essa lei não passa
com facilidade, não. - previu o Claudio.
-Ontem, o Ariel Palacios, correspondente
do Globo News em Buenos Aires, deu umas pinceladas sobre a visão dos governos
da América do Sul sobre o assunto; disse que a Argentina é o país mais flexível
com os LBTG. O Maduro da Venezuela vê com maus olhos e que o Evo Morales da
Bolívia, não só é contrário, como afirma que o homossexualismo é proveniente da
alimentação de galinhas transgênicas.
Daniel riu, e eu prossegui:
-O Ariel Palacios concluiu, enquanto a
Leilane, apresentadora do noticiário morria de rir, dizendo que o Evo Morales
fez questão de informar que não come galinha.
-Carlinhos, eu vou ao supermercado
agora, você quer alguma coisa de lá?
-Gina, comprei o que me faltava na
barraca a caminho daqui.
-Não quer galinha transgênica?
-Não.
Ela saiu no carro da irmã, que a
aguardava lá fora, enquanto o Daniel voltou para o interior da casa. Ficamos na
cozinha eu e meu irmão.
-Claudio, quando acordei, hoje, pensei
que estivesse com uma alucinação auditiva.
-Não bastasse a surdez da mamãe. -
pilheriou.
-A locutora da Rádio CBN informou que o
ministro Joaquim Levy teve uma embolia pulmonar, ontem, mas que viajaria neste
sábado aos Estados Unidos para se unir à comitiva da Dilma Rousseff.
-Eu não vi esta notícia no jornal; é
verdade que não li ainda todo o Globo.
-Sabe quem me veio à mente quando ouvi
isso? O coronel-aviador Américo Fontenelle.
-Eu sei que ele esvaziou até os pneus do
carro do Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, quando foi
diretor de Trânsito do governo da Guanabara.
-Isso, Claudio. O Fontenelle, com o seu
temperamento vulcânico, criou, segundo os críticos, currais de estacionamento
de automóveis em pleno centro da cidade. Como ele tinha carta branca dada pelo
governador Carlos Lacerda, não cedia um milímetro nas suas convicções.
-Currais de automóveis... creio que me
lembro.
-O Globo fazia uma campanha de oposição
sistemática ao Carlos Lacerda e, assim, estampava fotografias de locais onde
eram permitidos os estacionamentos e os chamava de currais. - disse-lhe.
-Ele foi, depois, para São Paulo, não
foi?
-O governador Abreu Sodré o convocou
para dar um jeito no trânsito de São Paulo que, em 1967, já era caótico.
-Em 1967, o Carlos Lacerda não governava
mais aqui, era o Negrão de Lima e, se não me engano, o Celso Franco assumiu o
lugar do Fontenelle. - manifestou-se.
-Claudio, no meio do fogo cerrado que
sofreu dos paulistas por colocar em prática as suas ideias, ele enfartou. Eu
tenho quase certeza de que o Coronel Fontenelle, mal recebeu alta no hospital,
foi para um programa de televisão, inteiramente hostil, polemizar.
-Você não tirou essa dúvida na Internet?
-O Google, pelo que pesquisei, não fala
desse enfarte e da saída do hospital, ainda convalescente, para defender suas
medidas no trânsito. Refresquei a memória, isso sim, sobre a emissora, era a TV
Paulista, e o programa, que se chamava “Roleta Russa”.
-Nome bem sugestivo. - comentou.
-O que estava lá no Google era que, no
meio da discussão acalorada, ele emudeceu subitamente, dobrou as pernas e seu
corpo foi ao chão. A câmera tremeu e a transmissão foi interrompida. Ele estava
com 47 anos de idade, deixou mulher e cinco filhos.
-Ele parecia mais velho. Eu daria lugar
a ele no banco dos idosos no metrô. - observou.
-A Internet não reproduziu a frase do
Carlos Lacerda quando soube da morte dele.
-Qual a frase? Vou citar de memória, as
palavras podem não ser essas, mas o sentido sim: “Fontenelle morreu como um
heroi no campo de batalha”.
-Heroi. - sopesou a palavra.
-Para o Doutor Jerônymo, quando lhe
relembrei esse caso, nos 70, me garantiu que ele era maluco.
-E, agora, Carlinhos, você pensa que o
Joaquim Levy, saindo do hospital diretamente para os Estados Unidos, onde vai
defender as ideias dele, está cometendo a mesma loucura do Coronel Fontenelle?
-Mais ou menos.
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