Total de visualizações de página

quarta-feira, 1 de julho de 2015

2886 - Picasso e a tangerina


-------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 5137                              Data:  30 de junho de 2015

-----------------------------------------------------

 

SABADOIDO IDA E VOLTA

PARTE II

 

-Tirou o uniforme de dormir da torcida do Palmeiras?- perguntei ao Daniel, que retornava à cozinha sem o conjunto de moleton verde.

-Carlão, você sabe se o Luca continua endiabraaaaaaado no campeonato de tênis de mesa.

-Falei com ele, dois dias atrás pelo telefone e não tocou no assunto.

-Então, deve ter perdido; espero que o vencedor não seja do Flamengo.

-O Luca deixou lá em casa, além das cartas da Rosa, o presente dela de aniversário para mim.

-Ela esqueceu o dia do seu aniversário? - interveio meu irmão.

-A Rosa é a prova viva que a leitura é o adubo mais eficaz para a memória. Ela está com 84 anos e lê desde os 4; não se esquece de nada. Escreveu, numa carta que, embora eu aniversariasse no dia 6 de outubro, enviava o meu presente.

-Qual?... - indagou o Daniel.

-O romance “Caravaggio”, com o subtítulo “Um Nome Escrito Em Sangue”.

-Nome escrito em sangue é Matarazzi, que é o carniceiro da defesa da seleção italiana e levou aquela cabeçada no peito do Zidane. - trocou meu sobrinho a pintura pelo futebol para obter um efeito hilariante.

-No meio do livro, ela colocou um texto em que me recomenda atentar para a página 123, porque se encaixa com o que aconteceu com ela na Igreja de Santo Agostinho em Roma: deixou de lado o Isaías de Rafael, e “caiu de quatro e começou a pastar” quando se deparou à esquerda com a Madona de Caravaggio.

-O que ela quis dizer com cair de quatro e começar a pastar, Carlão?

-Encantamento; epifania.

-Há, agora no Centro Cultural Banco do Brasil, uma exposição de telas de Picasso. O noticiário da Globo News mostrou, anteontem, alguns desses quadros.

-Eu vi, Claudio, enquanto a tela mostrava os quadros, a Leilane, âncora do programa,  se extasiava: “Que beleza! Muito bonito!”

Em seguida, voltei-me para o Daniel:

-Você não aprendeu no colégio que os seguidores da Arte Moderna repudiam o “belo”?

-Carlão, as mulheres pintadas pelo Picasso são belíssimas.

O ponto final da frase do Daniel foi um estrondoso espirro.

 -Com essa friagem, o que mais se escuta são espirros. - observou o Claudio.

-Todos os sábados, o Dieckmann posta, no Facebook, uma história do Mickey; a de hoje é de um barco viking movido com os espirros do Pateta.

-Carlão, você está dizendo que eu espirro como o Pateta?

-Não se apoquente que os meus espirros, somados com o pessoal do meu trabalho, levam um barco viking da Dinamarca à América.

-No Globo de hoje, lê-se que, com o frio, o sangue fica mais viscoso e o coração corre mais riscos. - manifestou-se o Claudio.

-Vai esquentar tocando teclado? - perguntei ao ver meu sobrinho se levantar para sair.

-Não; vou participar de umas corridas de automóvel no computador.

Quando eu e o Claudio ficamos sós, na cozinha do Sabadoido, ele puxou outro assunto.

-Você viu, nesta semana, o erro de português do nosso imortal do Globo?

-Quem?... o Zuenir Ventura?...

-O Merval Pereira. Quando eu topei com “prazeirosamente”, no artigo dele, eu disse que não escaparia da coluna “Autocrítica” e não escapou, mas não citaram o autor do erro, só escreveram que ocorreu na página 4.

-Você herdou o olhar de revisor do papai, eu não, Claudio. Eu desfruto de tal maneira a leitura que passo batido por erros ortográficos, solecismos, a não ser que sejam muito grosseiros.

-Eu já peguei “chipanzé” em vez de chimpanzé, “guaximim” em vez de “guaxinim” e, o pior de todos, “exitará” em vez de hesitará.

-Este, Cláudio, até foi manchete do Jornal do Brasil: “Geisel não “exitará” de lançar mão do AI 5”. Também houve esta manchete do Globo: “Égua cavalga nove quilômetros pelas ruas”.

-Ela não cavalga, galopa. - corrigiu.

-O Machado de Assis, depois de escrever seus romances, entregava para o Mário de Alencar, um excelente gramático, filho do escritor José de Alencar, para fazer a revisão.

-O papai me contou, Carlinhos, que, certa vez, no Diário de Notícias, ele pegou um texto em que estava escrito Mossoró e corrigiu para Moçoró. Quando a coisa já estava para ser impressa, voltou tudo e meu pai teve de pôr de novo o Mossoró. Mas o papai estava certo; Moçoró é uma palavra de origem indígena, e, segundo os gramáticos, nunca pode ser com “ss”.

-O Flexa Ribeiro, candidato a governador da Guanabara com o apoio do Carlos Lacerda?...

-O que tem?

-Não me recordo bem se foi o Antenor Nascente ou o Aurélio Buarque de Holanda, enviou-lhe uma carta tratando-o de Flecha Ribeiro.

-Seja quem for, coloca a gramática acima de tudo.

-O Medeiros e Albuquerque conta no livro de memórias “Quando Eu Era Vivo”...

-Eu li esse livro. - interrompeu-me.

-Talvez você se lembre de uma passagem dele com Machado de Assis. Com a Proclamação da República, ele assumiu um cargo educacional importante...

-Enquanto o Machado de Assis perdia o cargo de diretor da Secretaria da Indústria do Ministério da Viação. - interrompeu-me de novo.

-Medeiros e Albuquerque procurava um professor de português que não encharcasse os alunos de gramática e, quando encontrou o escritor, depois do fato consumado, contou-lhe sobre essa procura, e o Machado de Assis lhe disse mais ou menos isto: “Por que não me nomeou, eu não conheço gramática”.

-Ele não era um expoente, mas conhecia sim.

Mudei de assunto:

-Você leu no Globo de ontem, na coluna “Contando Histórias”, a épica vitória do basquete brasileiro sobre os Estados Unidos, em 1987, no Pan-Americano de Indianápolis?

-Li; os americanos nunca haviam perdido em casa.

-Eles colocaram quase 20 pontos de vantagem, e já contavam com a vitória certa. Então, eles puseram, no intervalo, uma enorme garrafa no vestiário para abrir no final da partida.   

-Foi quando o Oscar acertou todos os lançamentos de 3 pontos e o Brasil foi se aproximando no placar cada vez  mais até passar à frente. Foi a maior vitória do basquete brasileiro até hoje.

-Nessa reportagem, Claudio, contam que o Seu Chico, uma espécie de faz tudo da seleção, entrou no vestiário dos Estados Unidos e roubou o garrafão, levando-o para a festa brasileira.

-Será que furtou mesmo? - pôs em dúvida.

-Eu acredito, Claudio, que os americanos deram aquele garrafão, já que a festa deles avinagrou.

-É possível que seja isso. O vestiário é cheio de gente para alguém furtar uma grande garrafa de champanhe e não ser visto.

-E como disse o Tom Jobim para o Carlos Lira, que queria que eles abandonassem a exibição de Bossa Nova do Carnegie Hall porque ficou desvirtuado: “Não podemos, aqui tem cadeira elétrica.”

-Carlão, é só falar em que hora quer ir para casa.

-Você não vai esperar a sua mãe voltar do supermercado?

-Posso te levar primeiro e, depois, ir com ela almoçar no restaurante do Méier.

-Vamos, então, neste momento.

Foi quando no estacionamento do posto de gasolina em frente, eu soube que esquecera meu saco de tangerinas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário