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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5143 Data: 09 de
julho de 2015
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SABADOIDO
-Entrei no vagão do metrô na estação da
Carioca, vindo do trabalho e me deparei com dois idosos e uma idosa em pé.
-O metrô estava cheio?
-Para aquele horário, Claudio, antes
das 4 horas da tarde, estava cheio sim. Não era uma composição nova, era a
antiga.
-Então, piorou. - concluiu.
-Certa vez, um passageiro falou que
essas composições antigas tinham uns 30 anos; puxei conversa com ele, que me
disse que chegou a trabalhar na reparação delas em meado dos anos 80. Mas não
piorou, como você disse, porque nesses trens há mais barras para os passageiros
se segurarem.
-Nos trens chineses não há?
-Tantas barras ou balaústres, não. Como
são muitos os chineses, acredito que um se escora no outro e ninguém cai
durante a viagem. Mas deixe-me contar o que aconteceu.
-Conta.
-Na estação da Central, quando há o
fluxo e refluxo de passageiros, um idoso se sentou, outro permaneceu de pé e a
esposa deste conseguiu um lugar onde ela se segurava numa barra ao mesmo tempo
em que encostava o corpo na lateral do vagão. Também ficamos mais confortáveis
porque saiu mais gente do que entrou. Esses idosos, bem entendidos, tinham mais
de 70 anos.
-E ninguém dava o lugar? - perguntou-me
meu irmão.
-Então, um cidadão, indicando o senhor
que ficara de pé, dirigiu-se a todos em alto e bom som: “Não há um cavaleiro,
uma amazona, que possa ceder o lugar para este senhor?”
Claudio riu, enquanto meu sobrinho
entrava na cozinha do sabadoido.
-Carlão, quando eu estudava no Santa
Mônica, caiu na prova o feminino de cavaleiro.
-E você respondeu dama? - brinquei.
-Não, mas houve colegas que responderam
dama, pensando que amazona tinha a ver com o estado.
-Quando eu ouvi aquilo, no metrô,
pensei cá comigo: o meio de transporte aqui não é cavalo.
-E um cavaleiro ou uma amazona cedeu
lugar para o velhinho sentar? - interessou o Claudio pelo desfecho da história.
-O idoso se sentiu constrangido por ser
o alvo da atenção de todos, riu com as palavras do passageiro solidário,
recusou as ofertas de bancos e se pôs a conversar com ele como velhos amigos,
junto a um balaústre que seguravam com uma das mãos.
A palavra passou para o meu irmão.
-Esse negócio de lugar para se sentar é
coisa mais séria do que se pensa. O Movimento dos Direitos Civis nos Estados
Unidos, liderado pelo Martin Luther King, começou porque uma negra não se
levantou para um branco se sentar, desobedecendo a ordem do motorista do ônibus
e a lei do Alabama. Ela foi julgada e condenada.
-Foi isso mesmo?- duvidou meu sobrinho.
-Há um filme sobre isso, lançado há
pouco tempo, com alguns erros históricos, injustiças feitas ao presidente
Lindon Johnson, pelo que eu li, mas que deve ser visto. - manifestei-me.
-”Selma, Uma Luta pela Igualdade”.-
identificou meu irmão o filme depois de pôr a memória para trabalhar.
-E mais – prosseguiu – o nome dela era
Rosa Parks.
-Esse branco que estava de pé era
idoso?
-Era nada, Daniel. E se fosse?... Ela
vinha do trabalho, era costureira, estava cansada e, além do mais, sentava na
fileira dos negros. O que já é um absurdo.
Sem tomar fôlego, continuei:
-Falo de cadeira, ou melhor, de pé.
Quando me oferecem o lugar no metrô, eu recuso. Para mim, idoso é quem está com
mais de 70 anos, e quando eu chegar aos 70, idoso, para mim, será quem já passou
dos 75 anos.
-Vá me dizer, Carlinhos, que você
recusa sem ficar louco para dar uma sentadinha?... - interveio meu irmão com a
expressão matreira.
-Fala a verdade, Carlão? - aproveitou o
Daniel a oportunidade.
-Claro que não seria nada mal eu sentar
e resolver palavras cruzadas. Mas, de pé, aproveito para fazer uns exercícios
físicos, sem sair do lugar, que tenho aprendido.
-A Gina saiu? - notei a ausência da
minha cunhada.
-Foi ao supermercado e eu vou ao
computador. - disse o Daniel saindo da cozinha.
-Claudio, vindo para cá, notei que
colocaram um cartaz enorme no alambrado do campo da Praça Manet...
-O campo “Sangue e Areia”?
-Agora é “Sangue e Carpete”.
Continuando: esse cartaz é tomado pelos retratos tamanho GG do Dudu e do filho
com as palavras em letras garrafais: “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de
sete chaves dentro do coração.”
-A música do Milton Nascimento?...
-É o mesmo que colocar os retratos do
Michael Corleone ao lado do seu irmão Fredo com essas palavras da canção. -
comparei.
-Há aí uma grande diferença: o Michael
Corleone mandou matar o irmão, com o Poderoso Chefão do bairro, não houve
intermediários.
-É verdade. - concordei.
-O Dudu deixou um bom legado: limpou a
área antes de ser morto. - comentou;
-Por isso, os moradores trataram com
hostilidade os repórteres que apareceram por lá para cobrir o assassinato. Ele
morreu com o índice de popularidade nas alturas como o do Lula quando largou o
poder.
-Você já viu, Carlinhos, uma placa de
metal em que está gravado o retrato do Dudu e as palavras: “Estou junto de
Cristo.”?
-Descobri, agora, pois caminho ainda no
escuro, que, na redoma com a imagem de São Jorge no cavalo matando o dragão,
está encravada, numa pequena placa, o retrato do Dudu. Deve ser por isso que
ninguém se atreveu a roubar a imagem.
-Andaram furtando uma na Urca.
-Eu li no jornal, Claudio, na coluna do
Ancelmo Gois, precisamente. Não me recordo o nome da santa, sei que a imagem
foi recuperada com várias partes quebradas.
-Vá ver que os ladrões são do mesmo
time daqueles que deram uma pedrada na cabeça da menina de 11 anos do candomblé.
- aventou a hipótese.
-Ela, coitada, virou celebridade, mas,
daqui a pouco cairá no esquecimento, confirmando o que disse o Andy Warhol: “Um
dia, todos terão direito a 15 minutos de fama.”
-Mas não deveria cair no esquecimento, não.
- bradou.
-Importa, no caso, a intolerância
religiosa que continuará em cena, infelizmente. - argumentei.
-Aquela imagem de São Jorge matando o
dragão, iluminada, chama a atenção. - disse ele.
-Apesar da sede universal da Igreja
Universal Reino de Deus ficar nas imediações, a imagem resiste, sinal que o
Dudu, mesmo morto, impõe respeito.
-Mas os evangélicos de lá são
pacíficos.
-Eu estava brincando, Claudio. Quando
eu fazia caminhadas pelas ruas e topava com um grupo deles, saindo do que
chamam de “vigília”, eu não me preocupava, mas quando topava com grupos de
funkeiros vindo da esbórnia, eu entrava na primeira esquina e sumia da vista
deles.
Ruídos, vindo do portão, indicavam a
chegada da Gina do supermercado.
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