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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5109 Data: 19 de
maio de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XXXVI
DECEPÇÃO - De vez em quando, aparecia para reuniões, aqui no meu
trabalho, Roberto Galli; um senhor alto, empertigado, sempre trajado de terno.
Houve um tempo em que suas visitas foram mais constantes e eu me perguntava:
será que ele se lembra de mim?...
Não vinha tratar de assuntos do meu
campo de atuação, por isso, não nos encontrávamos nessas reuniões, eu o via
apenas passando, com alguns acompanhantes, pela minha baia, rumo a uma das
salas onde era aguardado.
-Veio tratar de afretamento? - indagava
dos colegas.
-Não sei, pois ele é do Syndarma –
Sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima. - era a resposta que
invariavelmente me davam.
Um dia, aguardando o elevador para ir
almoçar, ele surgiu sozinho no saguão. Era a minha oportunidade de lhe dirigir
a palavra.
-O senhor não foi um dos professores do
curso de afretamento na Fundação do Estudo do Mar em 1981?
Seus olhos faiscaram.
-Você se recorda? - surpreendeu-se
positivamente.
-É evidente; os representantes da
Petrobras e da Docenave, que tinham uma vivência incrível na área de
afretamentos, nos proporcionaram aulas antológicas e o senhor foi um deles.
-O Comandante Parga Nina também foi extraordinário
na sua aula. - assinalou.
-Ele era o meu chefe no Bureau de
Fretes na SUNAMAM. - disse-lhe isso já dentro do elevador que descia.
-Naquele tempo, havia SUNAMAM, Lloyd
Brasileiro, Conferências de Fretes... - relembrou.
E uma indústria naval com crescimento
que não era autossustentável e logo se desfaria como um castelo de cartas,
igualzinho a hoje. - pensei, mas sem me manifestar.
Quando chegamos ao térreo e cada um
seguiu o seu caminho, a sua expressão era radiante, estava orgulhoso da minha
lembrança transcorridos 30 anos.
Se eu fosse escoteiro, fiz a minha boa
ação do dia. - imaginava enquanto comia.
Então, fui designado, com uma
companheira de serviço, a comparecer num simpósio sobre Marinha Mercante, em
Botafogo. Muitos gostariam de estar no
nosso lugar, pois nos intervalos - americanizados para break coffee - era
servida uma fartura de guloseimas.
Na sala, onde ocorriam as conferências,
nos deparávamos com palestrantes que pretendiam atrair a máxima atenção para o
tema de que tratavam e com aqueles aqueles que, ao contrário, usavam a sua
matéria como escada para o seu ego sobressair. Constatava-se, entre os
assistentes, a mesma coisa: aqueles que aparteavam para salientar a importância
de um fato, e aqueles que interferem apenas para aparecer; nessa hora, eu ia ao
banheiro.
Roberto Galli estava lá, divisei-o
quando girei o pescoço em busca de pessoas conhecidas na plateia. Ele
interrompeu uma vez, apenas, um palestrador para realçar um ponto e disse que
desenvolveria mais esse ponto no momento da sua fala.
-Será de tarde; não percam de jeito nenhum.
- informou descontraidamente, arrancando risadas de todos.
Chegou a hora do almoço, esse gasto não
era coberto pelo simpósio, nós tínhamos uma hora e meia para procurar um
restaurante, nas cercanias, restaurar as forças e voltar para a segunda sessão.
A minha colega que tinha algum traquejo
em transitar por Botafogo me levou, sem perda de tempo a um lugar onde comemos
bem.
Na parte da tarde, não houve a mesma
vivacidade da manhã, mais por culpa da digestão do que dos falantes.
Então, foi anunciado o Roberto Galli
como o próximo palestrante. Ele deu início à sua oratória e eu me ajeitei na
cadeira. Ele falava e as minhas pálpebras pesavam. Percebi que toscanejava;
arregalei, então, os olhos em luta contra o sono, mas não por muito tempo, a
modorra me dominava.
-Fui sacudido quando o Roberto Galli
saiu do texto para, decepcionado, fazer uma observação que me despertou:
-Tem gente que está dormindo...
-Será que ele me viu?... - perguntei à
minha colega.
-Outras pessoas estavam também
cochilando. - intentou tranquilizar-me.
Semanas depois, quando ele retornou
para mais uma reunião no local onde trabalho, viu-me e desviou o olhar. Não
havia mais dúvidas, ele me surpreendeu na minha sesta. Eu o decepcionara. (*)
Bem, aquelas aulas de 1981, na Fundação
do Estudo do Mar – FEMAR – iam das 20 às 22 horas; eu as assistia depois de um
expediente das 8 até 17 horas e de um deslocamento de ônibus da Avenida Rio
Branco até a Rua Marquês de Olinda. Se o Roberto Galli tivesse visto os meus
cochilos, naquele tempo, também durante as suas aulas, não se decepcionaria
tanto 30 anos depois.
(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO pode afirmar,
categoricamente, que esta impressão foi causada pela pesadíssima consciência do
redator. Se Roberto Galli desviou o olhar foi porque era o caso e não porque
mais um assistente de suas palestras havia roncado. É um palestrante
traquejado.
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