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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5105 Data: 12 de
maio de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XXXV
SAPATO – Minha mãe me falava às vezes do marido da Tia Branca,
irmã do seu pai, o Tio Pedro. Ele era ligado ao comunismo, lá na Paraíba e se
envolveu na Intentona Comunista de 1935.
Sumiu com o fracasso do golpe e se tornou clandestino no Rio de Janeiro.
Tia Mariquinha, cunhada desse meu avô, sofria com os espíritos e um deles, bem
mexeriqueiro, lhe disse onde o Tio Pedro se escondia com a esposa. O pai da
minha mãe soube, foi até o cunhado e o obrigou a sair do Rio de Janeiro.
O que isso tem a ver com o meu sapato?
Nada, mas eu creio que o tio de ideias avermelhadas da minha mãe tem muito a
ver. Explico-me. Quando me vê caminhando descalço pela casa, desde menino até
hoje, a minha mãe cita o Tio Pedro, que sempre pegava um calçado para ela,
quando a via com os pés nus, só descansando quando ela o calçava. Será que o
Tio Pedro queria calçar todos os proletários do mundo? Bem, isso é outra
questão. Acredito que a idiossincrasia dele foi contagiosa, pois sempre me foi
difícil dar uma folga para os dedos dos pés com a minha mãe por perto.
Assim, na minha infância, eu tinha de
andar de sandálias, não as japonesas, que só chegaram em 1961, quando me
encontrava na fase infantojuvenil. Meu pai preferia os tamancos, recordo-me
muito bem disso, pois o meu irmão Claudio me quebrou um dente com uma
tamancada.
Nos cinco anos da Escola 9-10 Manoel
Bomfim, eu usava sapatos Colegial. Como éramos remediados – adjetivo que vem
caindo em desuso (o pessoal anda muito extremado), o sapato tinha de servir por
todo esse período. Evidentemente, que a natureza não concordou; meu pé crescia
e novos sapatos foram demandados durante o meu curso primário e a admissão. Por
sorte, a minha mãe tinha o chamado pé de boneca, ou seja, de número 33 e
herdamos eu e meu irmão, não um pé de boneca, mas pequeno. No número 38, ele
parou de crescer e o mesmo aconteceu com o Claudio, embora chegasse a 1,74 cm
de altura. Escapamos por dois números da humilhação de um amigo nosso que tem
de adquirir os seus sapatos na seção infantil das sapatarias.
Assim sendo, eu poderia usar um só par
de sapatos nos quatro anos do curso ginasial e a marca que aguentou essa
caminhada, que não foi pequena – por incontáveis
vezes percorri mais de 3 quilômetros da minha casa até o Visconde de Cairu – foi
a Vulcabrás. Não vai aqui nenhuma propaganda para a empresa que, em 2014,
demitiu mais de 22 mil funcionários.
Acostumei-me com a Vulcabrás e não o
tirei do pé, mesmo quando trabalhava, sendo gozado pelos colegas,
principalmente quando o multimilionário Paulo Maluf, para se mostrar um homem
do povo, garantiu que usava sapatos Vulcabrás. Ele teve de se explicar, no
programa de entrevistas do Jô Soares, que expressou o seu estranhamento de ele
não usar sapatos de cromo italiano ou alemão. Para provar que usava o legítimo
752 da Vulcabrás, Jô Soares propôs ao Paulo Maluf que trocassem os sapatos, a
troca não foi um sucesso (de humor, foi), porque o político, apesar da estatura
mediana, calçava 42, e o apresentador do programa, 39. Repetindo a sua propaganda do sapato, que,
com o 752 da Vulcabrás, fazia a “internacionalização com os pés no chão”, Paulo
Maluf, então ex-prefeito, continuou a calçá-lo quando os eleitores estavam
olhando.
Quanto a mim, tive de pendurar o Vulcabrás,
depois de tanto tempo, porque joanetes me exigiram essa atitude extrema. O
ideal para mim seria o pé descalço, mas, em casa, eu não podia por causa do
fantasma do Tio Pedro e, na rua, por causa de outros tios, além, é claro, da
imundície em que pisamos mesmo olhando o chão.
Assim, tive de buscar sapatos que não
me apertassem o pé. E qual o sapato novo que não aperta o pé? Segundo Fernando Morais, biógrafo do Assis
Chateaubriand, o magnata da imprensa entregava os seus sapatos novos de nº 36
(seção infantil) para uma funcionária sua usá-los até amaciar. Eu mesmo tinha
de amaciar os sapatos que eu comprava, mas, na primeira oportunidade, com as
pernas escondidas por uma mesa, eu os arrancava dos pés tal e qual o Juscelino
Kubitscheck, para citar outro político.
Demorei muitos anos para me render a
moda do tênis, mas quando constatei que um calçado mais despojado era usado no
local de trabalho sem suscitar censuras, calcei o tênis. Meus calos agradeceram, mas, como no tempo em
que usava sapatos, sou assediado pelos trabalhadores da única loja-engraxataria
do Rio de Janeiro, a Cataldo, quando passo pela Rua da Assembleia.
-Passei a usar tênis. - murmuro.
RISADAS – Lá, em casa, cada um comia num horário diferente do
outro. No jantar, meu pai baixara um decreto: às 18h 30min, ele fechava a
cozinha; panelas e pratos eram recolhidos e ficávamos limitados a esse
horário. Ainda assim, não nos uníamos
para jantar.
Em 1964, eu me vi numa situação
desconfortável: meu horário na 4ª série do Visconde de Cairu ia das 16h 30min
às 20h 10min. Caso eu jantasse depois da escola, tinha de enfrentar o prato que
a minha irmã deixara feito para mim desde as 18 horas, mais ou menos. Se eu
jantasse antes, teria de jantar numa hora em que muitos almoçam. Foi um
tormento: ou a comida quente como o inferno, ou fria como um cadáver –
lembrando que não havia micro-ondas naquele tempo.
Recordo-me, porém que, na infância, todos
nós comíamos juntos à mesa. E como não me recordar se eu e o meu Claudio,
nessas ocasiões, não podíamos olhar um para a cara do outro que ríamos sem
parar. Por quê? Ainda hoje, eu me
pergunto? Meu pai era muito brincalhão, até participava das nossas peladas no
quintal, quando tinha tempo; talvez o fato de vê-lo numa cena formal, reunindo
todos nós numa única mesa para comer, nos soasse engraçado. O certo é que
bastava uma troca de olhares entre mim e o Claudio para explodirmos em
gargalhadas. Minha irmã, por outro lado, se mostrava logo mal- humorada e reagia,
quando nós mal nos sentávamos: “Pai, eles já vão começar.” E nós começávamos
mesmo, éramos repreendidos, o que acentuava ainda mais nossas risadas e, enfim,
retirados da mesa. Terminávamos de comer em outro lugar.
E a nossa mãe?... Será que herdamos o seu
ríso nervoso?... Soube, agora, por ela, que, no parto do seu filho caçula,
realizado na casa da nossa avó, em São Cristóvão, quando eu estava com 4 anos
de idade e o Claudio, com 2 anos e meio, todas as vezes que ela gritava, nós
dois caíamos na gargalhada.
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