----------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5098 Data: 4 de maio de 2015
---------------------------------------------------------------------
200ª CONVERSA COM OS TAXISTAS
Gosto do 140 pelos seus gestos e,
principalmente, pela sua fala tranquila; ele é de uma mansuetude que faz bem. Há pessoas assim, mas rareiam no
corre-corre do mundo atual.
-Tudo bem? - foram as suas palavras
quando entrei no seu táxi.
-A semana que vem é praticamente
morta... feriado na terça, na quinta-feira.
O 019, por exemplo, açulado por esse
meu comentário, investiria contra as medidas das autoridades brasileiras que
agem como se o Brasil fosse um país rico, e, assim, seus demais colegas, mas o
140 se limitou a esboçar um sorriso; em seguida, perguntou-me:
-Vai enforcar a semana toda também?
-Não; as minhas férias são tripartidas
em 10 dias, se não fosse trabalhar nessa semana, eu me sentiria numa quarta
férias. Mas eu poderia enforcar.
-O chefe é boa praça?
-Nada disso; ele desconta as horas dos
funcionários que batem o ponto, somem e reaparecem muito tempo depois. Dois
deles até procuraram o sindicato alegando sofrerem assédio moral.
-Assédio moral do chefe porque os
coloca para trabalhar?...
Riu com a sua pergunta e eu retomei o
meu discurso.
-Eu poderia tirar a minha quarta férias
sem estresse, usando o meu banco de horas, mas não é o momento.
-Vai deixar o seu banco quietinho,
deixando as retiradas para outra oportunidade.
-Isso; mas esse banco tem um limite de
depósitos: até 40 horas por ano.
-Não é como o Bradesco. - riu com a sua
piada.
-É um absurdo, aqui no Rio de Janeiro,
colocar um feriado dois dias depois de outro. Um convite ao ócio e prejuízo às
atividades econômicas, pois só ganham o setor de hotelaria, os comerciantes de
Shopping Center, os cobradores de pedágio...
Interrompeu-me:
-Mas vai dizer a um devoto de São Jorge
que o feriado do dia 23 está muito próximo do feriado de Tiradentes, eles lhe
responderão que o problema é dos portugueses, que deveriam ter enforcado o
Tiradentes em outro dia.
-O santo guerreiro ofuscou os
acontecimentos históricos do dia 21 de abril: o martírio de Tiradentes, os 30
anos de morte do Tancredo Neves e o aniversário da inauguração de Brasília.
Quanto à inauguração de Brasília, não é para ser lembrada e sim, lastimada.
-Minha mãe era devota de São Jorge. -
revelou após meu comentário.
-Ela estava numa feira, viu uma imagem
de São Jorge e quis comprá-la. O dinheiro que tinha na bolsa não dava, triste,
ela seguiu em frente e achou uns cruzeiros no chão. Ele agora tinha a quantia
necessária, voltou e comprou a imagem. Ela, com isso, ficou ainda mais devota
de São Jorge.
-É compreensível. - disse-lhe, já
saltando do seu táxi na rua Modigliani.
Na semana aludida de enforcamentos,
resolvi retirar 8 horas do meu banco, e não fui ao serviço na segunda-feira,
mas quarta-feira, dia 24, foi diferente e, de volta do trabalho, quando saí da
estação do metrô de Maria da Graça, deparei-me, por feliz coincidência, com o
táxi do 140.
-Festejou muito São Jorge? - brincou,
enquanto eu encaixava o cinto de segurança no banco do carona.
-Que foguetório! Superou o da passagem
do ano. - observei.
-A alvorada foi às 5 horas da manhã,
mas os devotos, nas igrejas e nos terreiros de umbanda, já estavam em vigília
toda a madrugada. - informou.
-Numa dessas alvoradas, eu caminhava
pelas ruas do outro lado do conjunto de Del Castilho e temi que a barulhada,
com os estalidos que não eram só bombas.
-Nem sempre são, apenas, morteiros,
cabeças de negro, malvinas. - juntou suas palavras às minhas.
-Eu me senti aliviado, quando escovando
os dentes, estrondou o foguetório. Na hora de eu sair para caminhar, 30 minutos
depois, a intensidade seria menor,
-Mas a intensidade não caiu tanto
assim, não. - contrapôs.
-Sim, mas não me aventurei por lugares
distantes da minha casa; nem circundei a Praça Manet, que alcança a sua
agitação máxima do ano no Dia de São Jorge.
-Não tem chegada de Papai Noel de
helicóptero, futebol de fim de ano com jogadores profissionais de férias, não
tem ninguém para disputar prestígio com São Jorge. - animou-se sem se exaltar,
o que fugiria da sua brandura.
-Eu vinha notando, desde o início deste
mês de abril, que, naquela parte gramada perto do trailer “A Fofoca da
Madrugada”, na Praça Manet, colocaram uma redoma sobre um pedestal e, em volta,
cultivaram um jardim, um canteiro,
melhor dizendo, bem colorido por flores,
cercado por uma grade de uns 80 centímetros de altura. Faltava o santo
para ocupar aquela redoma.
-São Jorge, e seria colocado no dia dele.
- adivinhou.
-Estava na cara, mas a curiosidade
persistia e aumentava até o dia 23 de abril: como seria a imagem do santo?
-Como é?... Eu ainda não vi.
-Hoje, quando saí para trabalhar, vi
aquela redoma iluminada de longe e até me desviei do meu caminho para vê-lo de
perto. Colocaram, creio que por volta das 18 horas de ontem, a imagem do santo,
com a sua lança encravada no dragão, rodeado por flores vermelhas e brancas.
Soube pela esposa do meu irmão que o cunhado dela iluminou o santo guerreiro no
meio da festa. Para os moradores de Del Castilho e adjacências, era como se a
árvore de Natal estivesse sendo acesa na Lagoa.
Notei que me ouvia com atenção
redobrada.
-Ontem, a quadra de vôlei e basquete
ficou tomada por mesinhas e cadeiras, como nos bares e restaurantes, porque foi
servida uma feijoada, na hora do almoço, paga, naturalmente. De tarde, serviram
churrasco, este gratuitamente, para quem se habilitasse.
-Xi!... Com o preço dos açougues e
supermercados, a carne deveria ser suspeita. - manifestou-se.
-Mais suspeita do que a carne dos
chineses?
-Eu é que não vou à pastelaria de
chinês. - garantiu-me.
Por volta das 6h 30min da noite,
soltaram morteiros incessantemente. Eu assistia a um filme na televisão e nada
escutava, coloquei o volume no máximo, mas não adiantou. Eu pedia a todos os
santos, menos São Jorge, que aquela munição se esgotasse logo. Nem na época em
que o poderoso chefão era vivo, se festejou tanto.
-O Dudu trazia cavalos da fazenda dele
para cá e alguns deles eram cavalos mangalarga marchador, mas a maioria era matungo.
- lembrou.
-Sim, saía pelas ruas, lá pelas 5h 30
min, um misto de cavalhada com carreata. Depois, onde houve a feijoada este
ano, realizavam uma missa. Eu só vislumbrava da minha janela uma multidão e as
cores vermelha e branca.
-Dudu deu muito trabalho a São Jorge,
até que não deu mais. - aludiu ao seu assassinato.
-São Jorge teve mais trabalho matando o
dragão do que protegendo o Dudu.
Esse meu último comentário foi feito já
na Modigliani, quando eu saltava do seu táxi.
-A imagem do santo guerreiro está
naquele lado. - apontei.
-Vou lá ver.
Evidentemente que ele era influenciado
pela devoção da mãe, embora não demonstrasse abertamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário