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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5104 Data: 11 de
maio de 2015
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120ª VISITA À MINHA CASA
-Stefan Zweig, de volta ao Brasil?..
-Vim ver se o Brasil confirmou as
minhas previsões de 1941.
-O país do futuro?!... Continua, há
mais de 70 anos, sendo o país do futuro.
-Vai melhorar, vai melhorar.
-O otimismo não foi cultivado por você.
Mal fechei a boca, percebi que havia
sido grosseiro com o visitante ilustre.
-Em 1942, a Alemanha nazista, até
então, não perdia uma só batalha. A barbárie subjugava a civilização europeia,
o meu povo era exterminado. O pessimismo tomou conta de mim por completo.
Intentei mudar de assunto.
-Assisti, dias atrás, a um grande
filme”O Grande Hotel Budaspeste”. Soube, depois, que o enredo fora inspirado
num dos seus trabalhos.
-Apesar de eu ter vivido apenas 61
anos, a minha obra é vasta. Não conhece nada que eu tenha escrito?
-Evidentemente que conheço, seria uma
lastimável lacuna no meu currículo de leitor não ter lido nada seu. Li a sua
biografia do Balzac.
-Em 1920, eu escrevi “Três mestres:
Balzac – Dickens – Dostoiévski”.
-Há uma curiosidade nessa leitura, Stefan
Zweig: eu li essa biografia numa tradução do alemão para o português de
Portugal e havia o seguinte trecho: “Balzac gastava como um chichisbéu”.
-O que quer dizer chichisbéu?
-Fiz essa pergunta para o pai dos
burros, como é chamado, na intimidade, o dicionário no Brasil e ele me
respondeu que é o galanteador inoportuno e insistente. Ora, havia, no meu
trabalho, na época, um colega que se ajustava como uma luva nesse substantivo e
lhe pus esse apelido que pegou como visco depois que expliquei aos gozadores o
significado de chichisbéu.
-Lembro-me, agora – manifestou-se – da
palavra italiana cicisbeo, o galanteador inoportuno.
-Também li, da sua autoria, “Fernão de Magalhães
– O homem e sua ação” - mas confesso que todas as páginas do livro se apagaram
na minha retentiva; tenho de relê-lo. Como não poderia deixar de ser, li o seu
livro que mais celeuma provocou nesta terra: “Brasil, o País do Futuro”.
-Cunhei essa expressão e, agora, os
brasileiros mais céticos a usam como ironia amarga.
-Há uma celeuma entre seus biógrafos
que você escreveu esse livro de louvor ao Brasil para obter o visto de
residência, modelo 19, com a sua esposa Lotte, do governo ditatorial.
-Queriam que eu escrevesse a biografia
do Getúlio Vargas, mas recusei alegando que não dominava a matéria e era
verdade. Todos os meus biografados foram redigidos depois de eu me debruçar
sobre montanhas de papel.
-Você recebeu o visto do DIP –
Departamento de Imprensa e Propaganda, não foi?
-O Lourival Fontes era o ministro do
DIP, ele se aproximou muito de mim porque, como romancista, eu era muito famoso
no mundo intelectual. Mas eu não me deixaria manipular.
-Os mais venenosos disseram que você
escreveu “Brasil, o País do Futuro” por dinheiro.
-Eu era filho de um industrial, Moritz
Zweig, e a minha mãe, Ida Brettauer, pertencia a uma família de banqueiros.
Para a partilha da herança, só havia meu irmão. Sem falar da venda dos meus
livros e as adaptações para o cinema que me rendiam polpudos rendimentos.
-Sua formação foi em Viena, onde você
nasceu?
-Sim, estudei Filosofia na Universidade
de Viena e, em 1904, com 23 anos de idade, obtive o doutorado com uma tese
sobre “A Filosofia de Hippolyte Taine”.
-Você disse que a sua mãe e seu pai
eram judeus por acidente de nascimento.
-Disse isso dentro do contexto
religioso. O judaísmo sempre esteve entranhado em mim, como se constata nas
minhas obras.
-Em 1915, você se casou com Friderike
von Winsternit depois de obrigá-la a se separar do marido.
-Não a obriguei, estávamos apaixonados.
Comprei, então, uma casa na terra de Mozart, Salzburgo e lá vivemos durante 15
anos. Foi o período da minha vida em que tive mais inspiração para criar.
-No seu casamento, a Primeira Guerra
Mundial já eclodira.
-No início, o nacionalismo exacerbado
me levou a aderir à causa germânica. Com o correr da guerra, com toda aquela
sangueira, voltou-me a lucidez e me tornei um pacifista convicto para toda a
vida.
-Separou-se de Friderike e se casou com
sua secretária, Charlotte Elizabeth Altmann.
-Eu a tratava de Lotte e todos assim a
chamavam.
-Seus amigos, até os do Brasil, não
entenderam essa sua ligação com Lotte, porque ela era feia, asmática e sem a
cultura da Friderike. Eu, particularmente, vendo as fotos da sua segunda
esposa, a achei bonita.
-Não me separei intelectualmente de Friderike,
sempre nos correspondemos por cartas.
-Voltando ao “Brasil, País do Futuro”,
houve getulistas que o criticaram porque você não escreveu sobre o progresso
econômico e tecnológico do país, detendo-se no barroco e no folclore.
-Há críticas que são bem-vindas.
-Um dos seus biógrafos mais destacados,
Alberto Dines, alude a um militante político, que você conheceu na Europa,
Bélgica, se eu não me engano, que pregava uma variante do sionismo, ou seja, um
território para abrigar os milhões de refugiados judeus. Influenciado por essa
ideia, você escreveu vários folhetos territorialistas e passou à ação, indo até
Salazar, 1938, em busca de um território africano para esses refugiados. No que
concerne ao “Brasil, País do Futuro”, ele ressalta várias passagens em que você
escreveu que o Brasil podia fazer a felicidade de milhões de refugiados.
-Eu me sentia angustiado com a
crueldade contra o povo judeu.
-Hitler avançava na Europa e o povo
judeu era exterminado.
-De Petrópolis, onde aluguei uma casa
para morar com Lotte, escrevi estas palavras numa carta à Friderike: “O que a
velhice poderia me trazer de bom, recolhimento, repouso, reflexão e honra, me
traz caçada, isolamento e ódio... Não
fale a ninguém do meu aniversário.”
-No carnaval de 1942, você veio ao Rio
de Janeiro com a Lotte, para se distrair, segundo seus amigos brasileiros,
porém, depois de ler notícias terríveis sobre a guerra, retornou para casa com
ela.
-Quando almocei com esses amigos no
Restaurante Minhota, na Rua São José, eu já estava decidido a me matar.
-Um dia antes da tragédia, 22 de
fevereiro de 1942, você escreveu para Friderike sobre a sua agonia, que não o
deixava mais se concentrar, e lamentou não ter podido concluir a biografia de Balzac.
-Mas pedi a ela, nessa carta, que não
tivesse pena de mim.
-Manuel Bandeira traduziu o seu “Último
Poema”, eu o tenho aqui em mãos.
“Suave as horas bailam sobre
O cabelo branco e raro.
A áurea taça a borra cobre;
Sorvida, eis o fundo, claro!
Pressentimento da morte
Não turba, é alívio profundo.
O gozo mais puro e forte
Da contemplação do mundo
Só o tem quem nada cobice.
Nem lamente o que não teve.
Quem já o partir na velhice
Sinta – um partir mais de leve.
O olhar despede mais chama
No instante de despedida.
E é na renúncia que se ama
Mais intensamente a vida.”
-Foi tudo muito triste. - balbuciou.
-Você deixou uma tocante carta de
despedida, deixe-me ver se a encontro. - disse-lhe rumando para o computador.
-Não há necessidade, eu a citarei de
memória.
E assim o fez:
-”Antes de deixar a vida por vontade
própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um
carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me proporcionou
a mim e a meu trabalho tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia, aprendi a
amar este país mais e mais e, em parte alguma, poderia eu reconstruir minha
vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a
Europa, autodestruído. Depois de 60 anos, são necessárias forças incomuns para
começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de
desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor
concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a
liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus
amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente
impaciente, vou-me antes. Stefan Zweig”.
Suavemente, partiu.
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