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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4367 Data: 20 de
fevereiro de 2014
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125ª VISITA À MINHA CASA
Logo que o vi materializando-se na minha
frente, chamei-o de Chalaça, ele me pediu para que dissesse o seu verdadeiro
nome, Francisco Gomes da Silva, depois, com uma risada, afirmou que o seu nome
não era tão verdadeiro assim e aceitou o cognome Chalaça.
-Chalaça, para Carlota Joaquina, você
era o bastardo insinuante e ela, para você, a espanhola maldita. Como chegaram
a esse ponto?
-Primeiramente, penetrei no palácio
misturado aos criados honorários do Paço. Logo depois, Dom João me nomeou Moço
de Reposteiro. Eu estava com 20 anos de idade.
-Para tanto, você trazia uma razoável
bagagem intelectual?
-Em Santarém, Portugal, onde fui
preparado para ser padre, na minha adolescência, aprendi filosofia e latim, e
falei com fluência vários idiomas: francês, espanhol, italiano, inglês... Mas
não foi só por isso que impressionei o Príncipe Dom João.
-E, posteriormente, seu filho Dom Pedro.
- acrescentei admirado com ele, que mais parecia um personagem de Ponson du
Terrail.
-A corte era um ninho de cobras com
grupelhos rivais. Dom João suspeitava das tramas peçonhentas da esposa e me
incumbiu de espioná-la. Saí-me tão bem,
no papel, que, com 25 anos de idade, ou seja, em 1816, eu já era Juiz da
Balança da Casa da Moeda.
-Você tinha uma inimiga perigosa.
-Sim e senti isso na própria pele.
Sabendo que o meu ponto fraco não era só o calcanhar, mas todo o corpo, quando
me via em frente às belas mulheres, não resisti à dama do Paço, Dona Eugênia de
Castro e pus-me a fornicar numa sala do palácio: uma armadilha. Com a denúncia
de Carlota Joaquina, o rei nos viu nus, expulsou-me e baixou uma ordem: eu
deveria ficar a uma distância mínima de dez léguas da corte.
-E você, Chalaça?
-Fui para Itaguaí onde vivia um vigário
que eu conhecia desde os tempos de Santarém.
-Diz a história que você voltou para a
corte, Chalaça.
-Meu verdadeiro pai, Visconde de Vila
Nova da Rainha conseguiu mitigar a ira do rei contra mim.
-Seu verdadeiro pai?!... Sua vida foi
mesmo rocambolesca.
-A minha vida é romanesca desde que
nasci. Sou filho do visconde, na época barão, com uma criada de quarto. Minha
mãe, com 19 anos de idade, me registrou como filho de pai desconhecido. Meu pai
não me assumiu como filho, mas me manteve como tal. Quando se casou com uma
nobre, ele se viu forçado por ela a enviar a minha mãe para a África e a sumir
comigo, que estava com oito anos de idade.
-Já um joguete das artimanhas cruéis da
sociedade. - comentei.
-Como meu pai gostava de mim, encontrou
uma hábil solução: pagou oito mil cruzados a Antonio Gomes, seu protegido e
ainda o empregou como ourives da Casa Real, para registrar-me como filho
legítimo.
-O que explica seu nome Francisco Gomes
da Silva.
-E também explica a minha ida para um
seminário de Santarém, onde estudei para ser padre e adquirir a bagagem
cultural de que falávamos.
-Chalaça, você nasceu e morreu em
Portugal, mas a maior parte da sua vida foi no Brasil. Como chegou aqui?
-Eu estava com dezesseis anos de idade
quando soube que, em Lisboa, havia preparativos de fuga da corte real para o
Brasil. Escapei do seminário e rumei para a capital. No caminho, os franceses
me prenderam, mas consegui me evadir. Sempre fui mestre nisso.
-E como você conseguiu embarcar com a
corte para o Brasil?
-Eu tinha pouco tempo, pois cheguei em
cima da hora do embarque. Ladino, como sou, consegui achar meu pai adotivo que
me colocou numa das embarcações que fugiam de Napoleão.
-E como foram seus primeiros anos aqui?
-Meu pai se estabeleceu como ourives e
eu trabalhei com ele. Como as mulheres e as noitadas exerciam uma atração
irresistível sobre mim, meu pai brigou comigo.
Saí de casa e abri uma tenda de barbeiro na Rua do Piolho.
-Hoje, chama-se Rua da Carioca.-
disse-lhe.
-Lá, trabalhei tanto quanto o Fígaro do
“Barbeiro de Sevilha”, de Rossini; fui cirurgião, dentista, apliquei
sanguessugas e ventosas...
-Largo al factotum. - brinquei.
-Depois, dei um jeito de me insinuar no
meio da corte.
-E a sua amizade com o futuro imperador
Dom Pedro I?
-Depois de servir ao pai, servi ao
filho, que amava as mulheres, ele era um femeeiro como eu.
-Mas você pretendeu retornar a Portugal
com a corte de Dom João VI e isso fez Dom Pedro sentir-se traído.
-Ciúmes, ciúmes que passaram. Sendo seu
secretário particular, Dom Pedro não tirava uma palha do lugar sem mim. Eu
escrevia para ele discursos, textos impressos nos jornais, além de lhe servir
de intérprete quando era obrigado a receber estrangeiros.
-Mesmo os seus detratores, Chalaça,
reconheciam que você era articulado tanto falando quanto escrevendo.
-Pouco antes da independência do Brasil,
Dom Pedro já havia reatado a velha amizade e, assim, tornou-me tenente em 1823,
capitão em 1824 e coronel-comandante em 1827.
-Você, Chalaça, como alcoviteiro de Dom
Pedro, apresentou-lhe as mais apetitosas donas, e uma delas foi Maria Domitila
de Castro Canto e Melo, a futura Marquesa dos Santos.
-Ele a conheceu através de mim.
-Chalaça, há quem diga que você,
pactuado com a futura Marquesa de Santos, extraíram o maior lucro possível de
Dom Pedro I.
-A minha vida prescinde de imaginações
férteis de tão atribulada que foi.
-Contudo, a sua influência sobe o
imperador cresceu ainda mais, haja vista os títulos honoríficos e a dinheirama
que obtiveram você e a Maria Domitila.
Francisco Gomes da Silva se limitou a
ouvir-me.
-Você escandalizou a Europa,
principalmente a França, quando pediu a mão da filha de Luís Felipe, o rei
cidadão, para Dom Pedro I, quando já se sabia, na Europa, o quanto a falecida
imperatriz Maria Leopoldina sofrera na mão dele.
-Foi um escândalo: um imperador fora dos
eixos representado por um finório na corte francesa. - soltou uma gargalhada.
-Depois da rainha Carlota Joaquina, você
arrumou outro inimigo ardiloso: o Marquês de Barbacena.
-Com o gabinete popular, eu influenciava
na tomada de importantes decisões, com isso, cresceu o número de inimigos. O
Marquês de Barbacena conseguiu afastar-me da corte, em 1830, convencendo Dom
Pedro I a me nomear embaixador plenipotenciário do Império no Reino das Duas
Sicílias.
-Nunca mais voltou ao Brasil?
-Nunca; na Europa, escrevi três livros,
dois deles arrasando a reputação do Marquês de Barbacena.
-Ficou um ódio encruado por ele.
-Mas eu não estava derrotado, meus
inimigos nunca sentiram o gosto de me ver liquidado. Em 1833, quando Dom Pedro
já estava em Portugal, para que a sua dinastia não perdesse o trono,
convocou-me para ser secretário da casa de Bragança.
-Parece que a única mulher com que você
não compartilhou com Dom Pedro foi a digníssima imperatriz Maria Leopoldina.
-Também disseram que eu tive um caso com
Dona Amélia de Leuchtenberg, a segunda imperatriz do Brasil?...
-Você se tornou uma lenda, Chalaça, com
isso, todas as elucubrações passaram a ser factíveis.
Como se preparava para partir, apressei
a última pergunta.
-E a sua morte?
-Só me lembro de ter dito isso na
extrema-unção: “Padre José, eu amei demais as mulheres e o dinheiro...”
E se foi.
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