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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4362 Data: 11 de fevereiro de 2014
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NA ESTREIA DA NONA DE BEETHOVEN
Nem tínhamos nos recuperado ainda da
alucinante viagem pelo tempo, quando ouvimos gritos de criança e sons estalados
de tapas numa cacofonia dramática.
-O que é isso, Carlos?
Quando consegui recuperar a visão, por
pouco não fechei, agora, voluntariamente, os olhos.
-Um senhor bate num guri, Elio.
-Vou enquadrar esse criminoso no Estatuto
da Criança e do Adolescente. - indignou-se.
-Deixe seu cacoete de jurista, Elio;
pela vestimenta dos dois, se não estivermos no século XVIII, estamos no XIX.
Nem terminei de falar e pancadas fortes
soaram na porta da casa onde o menino era espancado. Era uma vizinha irritada
com a barulheira.
-Pare com isso, Herr Beethoven. Não
basta eu ter de ouvir a sua música, ainda sou obrigado a escutar berros de
criança.
-Bee-tho-ven!... escandimos eu e Elio
cada sílaba levados pelo espanto.
O menino conseguiu escapar das mãos
roliças do compositor e correr para a porta. Seguro de que escaparia, esganiçou
tanto a voz que até um surdo o ouviria.
-Nasci para ser militar, não um
pianista.
E saiu, em desabalada carreira.
-Carlos, já sei o que acontece:
Beethoven queria que o menino, filho do seu irmão morto, se tornasse músico de
qualquer maneira.
-Aconteceu isso também com ele... -
observei sem atentar para a clareza das minhas palavras.
-Como assim?
-Mais criança do que o seu sobrinho,
agora, Beethoven era submetido pelo pai bêbado a surras homéricas porque não se
mostrava um menino prodígio como Mozart.
-Já entendi; o pai de Mozart ganhou
dinheiro e fama exibindo, pela Europa, o filho desde os cinco anos de idade,
aos monarcas e ao papa, e o pai de Beethoven pretendia fazer o mesmo.
-Isso mesmo, Elio.
-E agora, ele comete o mesmo crime que sofreu.
- voltou a indignar-se o Elio.
Depois, intentou se corrigir.
-Saí da modulação, meu tom de voz não é
tão alto.
-Não se preocupe, ele não nos escuta.
Enquanto falávamos, Beethoven encheu de
água uma vasilha, levantou-a com as duas mãos, pendeu para baixo a cabeça e
despejou tudo sobre ela sacudindo-a com gestos bruscos em seguida.
-Ele sempre faz isso antes de compor. -
lembrei.
O vizinho debaixo soltou sonoros
palavrões, pois a água escorria pelas rachaduras no assoalho.
-Não adianta xingar, ele é surdo. -
manifestou-se o Elio.
-Vamos sair daqui para não incomodar o
gênio no momento da criação. - propus.
Saímos à rua e estacamos quando vimos,
numa estalagem, o sobrinho do Beethoven. Não gritava mais, no entanto,
transparecia na sua fala o momento sofrido há poucos minutos.
-Por que não fiquei com a minha mãe?...
Meu tio me obriga a ser o que eu não sou. - dizia para uma senhora gorda que
parecia dona do modesto estabelecimento.
-Um dia, ele vai se conformar. -
contemporizou.
O menino prosseguiu:
-Quando não me tortura, fica de um lado
para o outro cantarolando lá lá lá rá rá rá rá rá rá.
Apesar da entonação tosca, os olhos do
Elio brilharam.
-Carlos, essa não é a nona sinfonia?
-É isso e muito mais.
Elio não entendeu a minha entonação
irônica, percebi e tentei esclarecer o porquê.
-Certa vez, eu estava na seção de discos
clássicos de uma loja, quando um rapaz se aproximou de mim com uma pergunta, se
eu sabia o nome de uma música; em seguida, cantarolou o trecho que ouvimos
agora.
-E você? - reagiu o Elio com
curiosidade.
-Antes de eu falar alguma coisa, ele
pretendeu ser ainda mais explícito, dizendo-me que ela era tocada na
propaganda, se a memória não me trai, de uma marca de Biscoito.
-O rapaz não sabia nada.
-E como não sabia, eu o informei que
aquilo era um trecho de dez segundos de uma sinfonia com mais de uma hora e
quinze de duração. Ele nem quis saber de mais nada, retirou-se quase que
correndo da seção de discos clássicos.
E voltamos à realidade do século XIX.
-Há doze anos que Beethoven não compõe
uma sinfonia, a última foi a oitava, em 1812. - manifestei-me com empolgação.
-Estamos, então, em 1824. - concluiu o
Elio.
E pensou em voz alta:
-O que ocorreu de importante neste
ano?...
-Elio, a criação da Nona Sinfonia de
Beethoven, uma das maiores obras realizadas pela mente humana, como o Hamlet,
de Shakespeare, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o Davi de Miguelângelo...
-Vamos, então, à estreia da última
sinfonia de Beethoven. - interrompeu-me.
Há anos que Beethoven pretendia
incorporar parte do poema An die Freude (À Alegria) à sua arte, e
essa incorporação vocal a uma sinfonia era um feito nunca tentado antes, e esse
momento se daria no quarto movimento. Para tanto, o compositor torturou a sua
mente para encontrar a maneira mais adequada de introduzir a ode de Schiller à
massa orquestral.
Anton Schindler, célebre pela amizade
que nutriu pelo compositor, escreveu sobre as dores dessa criação. Pelo que se
lê, ao encontrar o momento correto para a entrada do coro, Beethoven gritou de
júbilo, pela casa, como Arquimedes ao descobrir a “Lei do Empuxo”.
Bem, a estreia foi marcada para o dia 7
de maio, no Kärntnertortheater em Viena. Eu e Elio estávamos lá.
-Beethoven queria reger... - sussurrei.
-Como, se anda com uma corneta acústica
nos ouvidos?! - disse o Elio.
-O diretor musical do teatro vai reger,
mas Beethoven ficará no palco do lado dele. - informei.
-Coisas nunca vistas e ouvidas
acontecerão aqui. - concluiu o Elio, enquanto os músicos da orquestra afinavam
seus instrumentos.
Beethoven desejava que a primeira
audição da sua obra fosse em Berlim, pois acreditava que o gosto dos vienenses
tendia para as óperas de Rossini, mas se enganou: o teatro estava repleto.
Quando maestro e compositor pisaram o
palco, a plateia vibrou. Assim que os dois se postaram diante da orquestra
houve um silêncio profundo.
-Carlos, são dois maestros para uma só
orquestra. - comentou o Elio com a inusitada cena que todo o teatro
testemunhava.
Os primeiros acordes emudeceram todos.
Beethoven gesticulava freneticamente, os músicos, no entanto, o ignoravam,
seguindo os gestos do regente Michael Umlauf. Como o compositor nada percebia,
continuou a reger.
-Ele está atrasado em vários compassos.
- comentou alguém perto de nós.
Na entrada do coro, no quarto movimento,
a monumental música se tornou ainda mais impressionante.
Quando ecoou a última nota, os aplausos
substituíram a música em intensidade. Sem ouvir nada, Beethoven permanecia de
costas para o público; então, a jovem solista que cantara com o registro de
contralto, pegou-o pelo braço e o mostrou à plateia em delírio. Ele, então, viu
as mãos se batendo incansavelmente, lenços e chapéus sacudidos no ar. Estava
comovido. Curvou-se várias vezes em agradecimento.
Nós é que temos de agradecer. - devem
ter pensado todos os presentes.
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