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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

2562 - o surdo



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4362                         Data: 11  de fevereiro de 2014
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NA ESTREIA DA NONA DE BEETHOVEN

Nem tínhamos nos recuperado ainda da alucinante viagem pelo tempo, quando ouvimos gritos de criança e sons estalados de tapas numa cacofonia dramática.
-O que é isso, Carlos?
Quando consegui recuperar a visão, por pouco não fechei, agora, voluntariamente, os olhos.
-Um senhor bate num guri, Elio.
-Vou enquadrar esse criminoso no Estatuto da Criança e do Adolescente. - indignou-se.
-Deixe seu cacoete de jurista, Elio; pela vestimenta dos dois, se não estivermos no século XVIII, estamos no XIX.
Nem terminei de falar e pancadas fortes soaram na porta da casa onde o menino era espancado. Era uma vizinha irritada com a barulheira.
-Pare com isso, Herr Beethoven. Não basta eu ter de ouvir a sua música, ainda sou obrigado a escutar berros de criança.
-Bee-tho-ven!... escandimos eu e Elio cada sílaba levados pelo espanto.
O menino conseguiu escapar das mãos roliças do compositor e correr para a porta. Seguro de que escaparia, esganiçou tanto a voz que até um surdo o ouviria.
-Nasci para ser militar, não um pianista.
E saiu, em desabalada carreira.
-Carlos, já sei o que acontece: Beethoven queria que o menino, filho do seu irmão morto, se tornasse músico de qualquer maneira.
-Aconteceu isso também com ele... - observei sem atentar para a clareza das minhas palavras.
-Como assim?
-Mais criança do que o seu sobrinho, agora, Beethoven era submetido pelo pai bêbado a surras homéricas porque não se mostrava um menino prodígio como Mozart.
-Já entendi; o pai de Mozart ganhou dinheiro e fama exibindo, pela Europa, o filho desde os cinco anos de idade, aos monarcas e ao papa, e o pai de Beethoven pretendia fazer o mesmo.
-Isso mesmo, Elio.
-E agora, ele comete o mesmo crime que sofreu. - voltou a indignar-se o Elio.
Depois, intentou se corrigir.
-Saí da modulação, meu tom de voz não é tão alto.
-Não se preocupe, ele não nos escuta.
Enquanto falávamos, Beethoven encheu de água uma vasilha, levantou-a com as duas mãos, pendeu para baixo a cabeça e despejou tudo sobre ela sacudindo-a com gestos bruscos em seguida.
-Ele sempre faz isso antes de compor. - lembrei.
O vizinho debaixo soltou sonoros palavrões, pois a água escorria pelas rachaduras no assoalho.
-Não adianta xingar, ele é surdo. - manifestou-se o Elio.
-Vamos sair daqui para não incomodar o gênio no momento da criação. - propus.
Saímos à rua e estacamos quando vimos, numa estalagem, o sobrinho do Beethoven. Não gritava mais, no entanto, transparecia na sua fala o momento sofrido há poucos minutos.
-Por que não fiquei com a minha mãe?... Meu tio me obriga a ser o que eu não sou. - dizia para uma senhora gorda que parecia dona do modesto estabelecimento.
-Um dia, ele vai se conformar. - contemporizou.
O menino prosseguiu:
-Quando não me tortura, fica de um lado para o outro cantarolando lá lá lá rá rá rá rá rá rá.
Apesar da entonação tosca, os olhos do Elio brilharam.
-Carlos, essa não é a nona sinfonia?
-É isso e muito mais.
Elio não entendeu a minha entonação irônica, percebi e tentei esclarecer o porquê.
-Certa vez, eu estava na seção de discos clássicos de uma loja, quando um rapaz se aproximou de mim com uma pergunta, se eu sabia o nome de uma música; em seguida, cantarolou o trecho que ouvimos agora.
-E você? - reagiu o Elio com curiosidade.
-Antes de eu falar alguma coisa, ele pretendeu ser ainda mais explícito, dizendo-me que ela era tocada na propaganda, se a memória não me trai, de uma marca de Biscoito.
-O rapaz não sabia nada.
-E como não sabia, eu o informei que aquilo era um trecho de dez segundos de uma sinfonia com mais de uma hora e quinze de duração. Ele nem quis saber de mais nada, retirou-se quase que correndo da seção de discos clássicos.
E voltamos à realidade do século XIX.
-Há doze anos que Beethoven não compõe uma sinfonia, a última foi a oitava, em 1812. - manifestei-me com empolgação.
-Estamos, então, em 1824. - concluiu o Elio.
E pensou em voz alta:
-O que ocorreu de importante neste ano?...
-Elio, a criação da Nona Sinfonia de Beethoven, uma das maiores obras realizadas pela mente humana, como o Hamlet, de Shakespeare, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o Davi de Miguelângelo...
-Vamos, então, à estreia da última sinfonia de Beethoven. - interrompeu-me.
Há anos que Beethoven pretendia incorporar parte do poema An die Freude (À Alegria) à sua arte, e essa incorporação vocal a uma sinfonia era um feito nunca tentado antes, e esse momento se daria no quarto movimento. Para tanto, o compositor torturou a sua mente para encontrar a maneira mais adequada de introduzir a ode de Schiller à massa orquestral.
Anton Schindler, célebre pela amizade que nutriu pelo compositor, escreveu sobre as dores dessa criação. Pelo que se lê, ao encontrar o momento correto para a entrada do coro, Beethoven gritou de júbilo, pela casa, como Arquimedes ao descobrir a “Lei do Empuxo”.
Bem, a estreia foi marcada para o dia 7 de maio, no Kärntnertortheater em Viena. Eu e Elio estávamos lá.
-Beethoven queria reger... - sussurrei.
-Como, se anda com uma corneta acústica nos ouvidos?! - disse o Elio.
-O diretor musical do teatro vai reger, mas Beethoven ficará no palco do lado dele. - informei.
-Coisas nunca vistas e ouvidas acontecerão aqui. - concluiu o Elio, enquanto os músicos da orquestra afinavam seus instrumentos.
Beethoven desejava que a primeira audição da sua obra fosse em Berlim, pois acreditava que o gosto dos vienenses tendia para as óperas de Rossini, mas se enganou: o teatro estava repleto.
Quando maestro e compositor pisaram o palco, a plateia vibrou. Assim que os dois se postaram diante da orquestra houve um silêncio profundo.
-Carlos, são dois maestros para uma só orquestra. - comentou o Elio com a inusitada cena que todo o teatro testemunhava.
Os primeiros acordes emudeceram todos. Beethoven gesticulava freneticamente, os músicos, no entanto, o ignoravam, seguindo os gestos do regente Michael Umlauf. Como o compositor nada percebia, continuou a reger.
-Ele está atrasado em vários compassos. - comentou alguém perto de nós.
Na entrada do coro, no quarto movimento, a monumental música se tornou ainda mais impressionante.
Quando ecoou a última nota, os aplausos substituíram a música em intensidade. Sem ouvir nada, Beethoven permanecia de costas para o público; então, a jovem solista que cantara com o registro de contralto, pegou-o pelo braço e o mostrou à plateia em delírio. Ele, então, viu as mãos se batendo incansavelmente, lenços e chapéus sacudidos no ar. Estava comovido. Curvou-se várias vezes em agradecimento.
Nós é que temos de agradecer. - devem ter pensado todos os presentes.

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