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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4356 Data: 31 de
janeiro de 2014
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124ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
Com o rádio, eu e minha equipe
pretendíamos agradar também as classes menos favorecidas pela sorte. - afirmou
o Roberto Marinho.
-Não era só nas casas abastadas, também
nos barracos, ouviam-se, além do futebol, é claro, o programa diário do Luís de
Carvalho, que ia das 6h da manhã ao meio-dia.
-Um magrinho, amorenado, com um sorriso
fácil e uma boa locução?... Recordo-me dele, mas aqui entre nós, eu ouvia mesmo
era música clássica na minha discoteca do Cosme Velho.
-Ele iniciava o programa com a oração de
São Francisco de Assis, que se tornava ainda mais comovente na sua bela voz.
Era um acontecimento. - disse-lhe.
Lembrei-me, então, que, projetado pelos
programas de auditório da Rádio Globo, ele se envolveu, junto a alguns astros
do disco, com meninas de menor idade; mas isso não era caso para ser tratado
naquela visita tão especial à minha casa.
Era hora de mudar de assunto.
-E a TV Globo?
-Muitos ligam o surgimento da TV Globo à
ditadura militar, mas não foi assim.
-Confesso que sou um deles.
-Pedimos a concessão de um canal de
televisão ao governo Gaspar Dutra, mas Getúlio Vargas foi eleito e negou; creio
que se arrependeu depois. A concessão nossa foi dada pelo presidente Juscelino
Kubitschek.
Tomei a palavra.
-Mas, em 1965, a TV Globo me parecia
muito incipiente. Vêm-me à mente alguns programas como o humorístico “Bairro Feliz”,
com artistas da TV Excelsior; o Agildo Ribeiro representando, num estúdio
pobre, trechos do libreto do Mário de Andrade para a música do Francisco
Mignone, “O Café”; e o Gláucio Gil, num cenário que nada tinha de suntuoso,
entrevistando a Cláudia Cardinale que veio ao Brasil divulgar o filme “Uma Rosa
para Todos”. Essas são as minhas recordações do início da TV Globo.
-Sim, mas nós estávamos conectados com o
grupo Time-Life que investiria 25 milhões de dólares no nosso canal de
televisão, ficando, porém, com 49% da participação.
-Sim, porém a Constituição Federal
impedia dinheiro estrangeiro nos meios de comunicação do Brasil.- frisei.
-João Calmon, presidente do condomínio
dos Diários Associados, fez uma oposição, que eu não diria feroz porque a
ferocidade estava incorporada no Carlos Lacerda. Na época, Assis Chateaubriand
que tanto quis esse acordo para si e foi preterido, estava numa cadeira de
rodas, tetraplégico. Contudo, quando Castelo Branco morreu, ele comemorou com
champanhe, pois o culpava pelo nosso acordo com a Time-Life.
E foi adiante:
-Abriram uma CPI contra nós e perdemos.
O acordo foi desfeito, e tivemos de indenizar o grupo americano. A minha dívida
foi tamanha que empenhei todos os meus bens, até mesmo a minha casa do Cosme
Velho.
-E valeu a pena essa ligação com o grupo
Time-Life, é o óbvio ululante, como diria o Nélson Rodrigues. -
concluí.
-Como valeu! Além dos 25 milhões de
dólares investidos, houve transferência de tecnologia avançada que redundou no
que hoje é chamado de “Padrão Globo de Qualidade”.
-Vem-me à mente o que o megaempresário
J. Pierpoint Morgan falava aos seus advogados.
-E o que ele falava?
-Não quero advogados que me digam o que
eu não posso fazer, e sim como fazer o que não se pode.
-Sim; Roberto Campos, umas das minhas
maiores admirações, reclamava sempre do cipoal de leis que impedia o progresso
do Brasil, a “fúria legiferante” era a sua expressão.
E continuou:
-O êxito da TV Globo até mitigou o
esvaziamento do Rio de Janeiro, que deixou de ser a Capital da República.
-Foi um risco e tanto, tudo o que era
seu ficou empenhado como garantia de uma grande dívida. - repeti, levado pelo
deslumbramento.
-Meu jornal, minhas estações de rádio,
minha casa...
-Um professor meu da Fundação Getúlio
Vargas afirmava que tinha três admirações na vida: Peter Drucker, que proferia
palestras com mais de oitenta anos; Fernanda Montenegro, que atuava melhor com
o passar do tempo, e Roberto Marinho que, com sessenta anos de idade, fez a
grande cartada da sua vida arriscando-se a começar do zero.
-Muita gentileza desse professor.
-Com a TV Globo despontando no regime
militar, com o “Jornal Nacional” ofuscando o “Repórter Esso”, da TV Tupi; com a
TV Excelsior sendo extinta, ficou em todos a convicção que as organizações do
Roberto Marinho subiram pela força dada pela ditadura.
A fisionomia dele se tornou vincada,
embora já houvesse ouvido essa acusação incontáveis vezes. E falou-me, com a
voz bem baixa – segundo as pessoas que lhe eram mais íntimas, assim procedia
quando se expressava com mais contundência:
-Nossa sociedade com o grupo Time-Life
veio antes da Revolução de 1964. Certa vez, o ministro da Justiça do governo
Castelo Branco, Juracy Magalhães, se reuniu com todos os diretores de jornal de
grande circulação para explicar o Ato Institucional nº 2. Ele nos disse, então,
que os militares sabiam da existência de comunistas em algumas redações e que
era necessário demiti-los. Eu me levantei da cadeira indignado: “Dos meus
comunistas cuido eu”. Outro jornalista a se rebelar foi o Júlio Mesquita do
Estado de São Paulo.
-E se a ditadura militar tivesse aberto
a porta para o êxito das Organizações Globo, você não seria obrigado a romper o
contrato com o grupo Time-Life e colocado todos os seus pertences como
garantia de uma dívida, como falamos há pouco. - procurei reforçar a sua
argumentação.
-E também fomos vítimas da censura. O
governo do General Geisel proibiu que a novela “Roque Santeiro” fosse ao ar
depois que inúmeros capítulos já tinham sido gravados, trazendo-nos um sério
prejuízo.
-Novela escrita por Dias Gomes, um dos
seus comunistas. - intervim.
-O meu pensamento, quando obtive a
concessão da TV Globo, era o telejornalismo, seria como um jornal transmitindo
notícias pelas câmeras e, para tanto, bastavam as instalações do Jardim
Botânico.
-Mas o senhor formou uma equipe estelar
com Walter Clark, Boni e Joe Wallach.
-Eles abriram o horizonte televisivo
investindo em novelas, em esporte, em programas de auditório, etc.
-E as instalações do Jardim Botânico se
apequenaram, e foi criado o PROJAC.
-Sim, mas ficamos trinta anos no Jardim
Botânico obtendo grandes sucessos.
E fez uma ressalva:
-Eles ficaram, pois o meu interesse
maior sempre foi o jornal fundado pelo meu pai.
-Todos os seus filhos foram com a
primeira mulher?
-Sim, com a Stela. Casei-me três vezes,
mas o meu grande amor foi a Lily.
-Disso, sabemos todos; esse caso até se
assemelha com o romance de Gabriel Garcia Marques “O Amor no Tempo do Cólera”.
-Quando a vi pela primeira vez, e me
apaixonei, foi em 1942. Ela estava casada com o jornalista e fazendeiro Horácio
Gomes Leite de Carvalho Filho. Esperei por ela até sua viuvez, então, declarei
meu amor.
-Ela enviuvou em 1983; passaram-se
quarenta e um anos.
-Separei-me da minha segunda esposa,
Ruth Albuquerque, e com a Lily me casei em 1991. Passaram-se, na verdade, quase
cinquenta anos.
-Digno mesmo do romance de Gabriel
Garcia Marques. - enfatizei.
-Hora de ir-me.
E com a mesma polidez que chegou,
partiu.
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