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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4364 Data: 16 de fevereiro
de 2014
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NO GRANDE FEDOR LONDRINO
Eu e Elio estávamos literalmente na
merda.
-Que fedor! - consegui exclamar.
-Agora, eu sinto na carne o que Jean
Valjean sentiu, com Marius Pontmercy nos ombros, quando lhe salvou a vida em
“Os Miseráveis”, de Victor Hugo.
-Sim, Elio, mas não estamos em Paris e
sim, em Londres.
E indiquei-lhe com a cabeça, pois os
meus dedos estavam ocupados em apertar as minhas narinas, a Catedral de
Westminster.
-Desde que entramos nessa geringonça
chamada de máquina do tempo, passamos por neve, por calor escaldante, por chuva
de nuvens e de balas, mas nunca experimentamos tamanha fedentina. - manifestou-se
com irritabilidade.
-Elio, você nunca entrou num banheiro de
botequim no Rio de Janeiro?
-Entrei, mas bastou-me sair e trancar a
porta para me restabelecer fisicamente; aqui, não, o fedor nos alcança em todos
os lugares para os quais fugimos.
Estávamos os dois no que os ingleses
denominaram “O Grande Fedor de 1858”.
Antes, ou seja, em 1852, a máquina do
tempo nos levou ao Palácio de Buckingham. Lá, depois do impacto que nos causou
o requinte do lugar, atentamos para a felicidade da Rainha Vitória e do
Príncipe Albert.
-Todos os casamentos reais são
realizados por interesses políticos, mas, nesse caso, houve uma exceção, eles
se gostam, basta reparar na expressão do casal.
-Houve interesses políticos, Carlos, mas
nesse caso, o amor prevaleceu. - fez o Elio a ressalva.
Não pudemos prosear por mais tempo, pois
os assessores da rainha se prontificaram a receber George Jennings que faria
demonstrações do seu invento anunciado como o mais espetacular. Ocultos, atrás
de uma cortina, eu e Elio, mortos de curiosidade, presenciamos tudo. George
Jennings abriu uma caixa, transportada por um ajudante, e de lá retirou um vaso
sanitário com uma tampa. Levantou, em seguida, essa tampa e seu ajudante se
sentou no vaso.
-Sem arriar as calças?!...
-É apenas uma demonstração, Carlos.
O inventor pôs-se, calmamente, a
explicar a todos da maneira mais didática possível sua criação. Os dejetos das
pessoas são depositados nesse vaso, e, em seguida, com um mero puxão de uma
cordinha, a bomba de descarga é acionada, com isso, um jato d'água com a sucção
carrega esse dejeto para bem longe dos olhos e do nariz. Tudo muito higiênico e
simples.
Se a Rainha Vitória e o Príncipe Albert
se encantaram com a invenção do vaso sanitário o que dizer dos seus súditos?
A era industrial já despontara na
Inglaterra há quase um século, e, em Londres, todos sonhavam em ter uma privada
em casa, e muitos conseguiram realizar o seu sonho.
Enquanto isso, no Brasil,
arremessavam-se penicos pela janela com o grito de alerta “Se abaixa, ioiô, que
lá vai cocô.” - manifestei-me.
-Sem falar nos escravos que ficavam
enfezados quando a merda dos barris que transportavam escorria sobre eles. -
acrescentou o Elio.
Mas nem tudo eram flores (se tal palavra
pode ser usada nesse contexto). Os dejetos que desapareciam no vaso sanitário
reapareciam nas tubulações de escoamento de chuva que, por sua vez, desaguava
no Rio Tâmisa.
Transcorreram um, dois, seis anos e o
Tâmisa se tornou terrivelmente fedegoso
e contaminado.
-Elio, os casos de cólera aumentaram
dramaticamente; dezenas de milhares de pessoas já morreram.
-Nada de bebermos água, somente algo bem
forte como gim. - propus em seguida.
-Não temos de temer o cólera, pois ainda
não nascemos.
-Sim, Elio, ainda assim, não escapamos
de cheirar essa fedentina.
Agora, em 1858, a coisa saiu do
controle. A família real arrumou as malas e viajou para uma cidade mais
perfumada do Reino Unido.
-Vamos queimar uns incensos. - sugeriu o
Elio.
-Uma fetidez não vai substituir outra. -
retruquei.
Elio teve, então, outra ideia.
-Vamos para o Parlamento. Lá, não pode
estar tão mal quanto nos outros lugares de Londres.
Fomos.
Integrantes do Partido Conservador de
Disraeli e do Partido Liberal de Gladstone esqueceram as suas diferenças
políticas e se uniram para encharcar as cortinas do Parlamento de perfume.
Um político que, pelo entusiasmo era um
admirador dos Estados Unidos, pediu a palavra e anunciou tonitroante:
-Na América, acabaram de inventar o
papel higiênico.
-Ora, cala-te! O problema vai muito além
da limpeza do rabo. - trovejou um liberal com um mau-humor compreensível.
-Para neutralizar essa fecaloide só um
rio de perfume tão caudaloso quanto o Tâmisa. - comentou um político olhando as
cortinas molhadas.
-O Rio Tâmisa está morto, a putrefação
mostra isso. - disse alguém.
Então, um parlamentar da situação pediu
a palavra e a algazarra se desfez por minutos.
-Foi criado o Metropolitan Board of
Works para fornecer a infraestrutura necessária para o alucinante
crescimento da nossa economia, que inclui um sistema de esgoto condizente.
-Sim, mas onde estão os resultados? -
replicou a oposição.
-Mas o Metropolitan Board of Works foi
criado no ano passado, os resultados não aparecem da noite para o dia.
Com discussões por todos os cantos, o
tumulto reiniciou.
-Só uma lufada de vento vindo do Tâmisa
emudece essa gente. - imaginei.
-Lufada de vento, não – temeu o Elio -
prefiro ouvir essa gritaria toda.
-Se a máquina do tempo for generosa, nos
transportará para a cidade em que a Rainha se encontra. - desejei.
Em vez disso, fomos enviados para o meio
das obras de construção do esgoto de Londres.
-É uma portentosa obra de engenharia,
Carlos.
-Concordo, mas eu sou economista, você
se formou em ciências jurídicas. O razoável é que se encontrasse aqui o
Dieckmann, que é engenheiro, e não, nós. - reclamei da sorte. (*)
-A Inglaterra deslancha economicamente
como a maior potência do mundo; e este é o preço do progresso. Tem de haver
obras de infraestrutura, como esta, para que um país tenha condições de
progredir com sustentação.
-E pensar que mais de cem anos depois
disto aqui, que cheiramos em Londres, há países cujos governos não realizam
obras de infraestrutura porque não dão votos.
-Carlos, estive em Londres, nos anos
1980 e constatei que o Rio Tâmisa foi ressuscitado. Cardumes de salmão saltavam
sobre as suas águas.
-E você comeu algum desses salmões?- fui
tomado pela curiosidade.
-Comi, Carlos, mas, se antes eu tivesse
passado pelo “Grande Fedor de 1858, não comeria.
(*) Muito estranho esses dois passearem por
todo lado e só lembrarem de mim quando estão na fedentina. – disse Dieckmann ao
Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, que não teve alternativa se não a
resignação absoluta ante tamanha injustiça.
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