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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

2564 - fé de menos ou fede mais?



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4364                         Data: 16 de fevereiro de 2014
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NO GRANDE FEDOR LONDRINO

Eu e Elio estávamos literalmente na merda.
-Que fedor! - consegui exclamar.
-Agora, eu sinto na carne o que Jean Valjean sentiu, com Marius Pontmercy nos ombros, quando lhe salvou a vida em “Os Miseráveis”, de Victor Hugo.
-Sim, Elio, mas não estamos em Paris e sim, em Londres.
E indiquei-lhe com a cabeça, pois os meus dedos estavam ocupados em apertar as minhas narinas, a Catedral de Westminster.
-Desde que entramos nessa geringonça chamada de máquina do tempo, passamos por neve, por calor escaldante, por chuva de nuvens e de balas, mas nunca experimentamos tamanha fedentina. - manifestou-se com irritabilidade.
-Elio, você nunca entrou num banheiro de botequim no Rio de Janeiro?
-Entrei, mas bastou-me sair e trancar a porta para me restabelecer fisicamente; aqui, não, o fedor nos alcança em todos os lugares para os quais fugimos.
Estávamos os dois no que os ingleses denominaram “O Grande Fedor de 1858”.
Antes, ou seja, em 1852, a máquina do tempo nos levou ao Palácio de Buckingham. Lá, depois do impacto que nos causou o requinte do lugar, atentamos para a felicidade da Rainha Vitória e do Príncipe Albert.
-Todos os casamentos reais são realizados por interesses políticos, mas, nesse caso, houve uma exceção, eles se gostam, basta reparar na expressão do casal.
-Houve interesses políticos, Carlos, mas nesse caso, o amor prevaleceu. - fez o Elio a ressalva.
Não pudemos prosear por mais tempo, pois os assessores da rainha se prontificaram a receber George Jennings que faria demonstrações do seu invento anunciado como o mais espetacular. Ocultos, atrás de uma cortina, eu e Elio, mortos de curiosidade, presenciamos tudo. George Jennings abriu uma caixa, transportada por um ajudante, e de lá retirou um vaso sanitário com uma tampa. Levantou, em seguida, essa tampa e seu ajudante se sentou no vaso.
-Sem arriar as calças?!...
-É apenas uma demonstração, Carlos.
O inventor pôs-se, calmamente, a explicar a todos da maneira mais didática possível sua criação. Os dejetos das pessoas são depositados nesse vaso, e, em seguida, com um mero puxão de uma cordinha, a bomba de descarga é acionada, com isso, um jato d'água com a sucção carrega esse dejeto para bem longe dos olhos e do nariz. Tudo muito higiênico e simples.
Se a Rainha Vitória e o Príncipe Albert se encantaram com a invenção do vaso sanitário o que dizer dos seus súditos?
A era industrial já despontara na Inglaterra há quase um século, e, em Londres, todos sonhavam em ter uma privada em casa, e muitos conseguiram realizar o seu sonho.
Enquanto isso, no Brasil, arremessavam-se penicos pela janela com o grito de alerta “Se abaixa, ioiô, que lá vai cocô.” - manifestei-me.
-Sem falar nos escravos que ficavam enfezados quando a merda dos barris que transportavam escorria sobre eles. - acrescentou o Elio.
Mas nem tudo eram flores (se tal palavra pode ser usada nesse contexto). Os dejetos que desapareciam no vaso sanitário reapareciam nas tubulações de escoamento de chuva que, por sua vez, desaguava no Rio Tâmisa.
Transcorreram um, dois, seis anos e o Tâmisa se tornou terrivelmente  fedegoso e contaminado.
-Elio, os casos de cólera aumentaram dramaticamente; dezenas de milhares de pessoas já morreram.
-Nada de bebermos água, somente algo bem forte como gim. - propus em seguida.
-Não temos de temer o cólera, pois ainda não nascemos.
-Sim, Elio, ainda assim, não escapamos de cheirar essa fedentina.
Agora, em 1858, a coisa saiu do controle. A família real arrumou as malas e viajou para uma cidade mais perfumada do Reino Unido.
-Vamos queimar uns incensos. - sugeriu o Elio.
-Uma fetidez não vai substituir outra. - retruquei.
Elio teve, então, outra ideia.
-Vamos para o Parlamento. Lá, não pode estar tão mal quanto nos outros lugares de Londres.
Fomos.
Integrantes do Partido Conservador de Disraeli e do Partido Liberal de Gladstone esqueceram as suas diferenças políticas e se uniram para encharcar as cortinas do Parlamento de perfume.
Um político que, pelo entusiasmo era um admirador dos Estados Unidos, pediu a palavra e anunciou tonitroante:
-Na América, acabaram de inventar o papel higiênico.
-Ora, cala-te! O problema vai muito além da limpeza do rabo. - trovejou um liberal com um mau-humor compreensível.
-Para neutralizar essa fecaloide só um rio de perfume tão caudaloso quanto o Tâmisa. - comentou um político olhando as cortinas molhadas.
-O Rio Tâmisa está morto, a putrefação mostra isso. - disse alguém.
Então, um parlamentar da situação pediu a palavra e a algazarra se desfez por minutos.
-Foi criado o Metropolitan Board of Works para fornecer a infraestrutura necessária para o alucinante crescimento da nossa economia, que inclui um sistema de esgoto condizente.
-Sim, mas onde estão os resultados? - replicou a oposição.
-Mas o Metropolitan Board of Works foi criado no ano passado, os resultados não aparecem da noite para o dia.
Com discussões por todos os cantos, o tumulto reiniciou.
-Só uma lufada de vento vindo do Tâmisa emudece essa gente. - imaginei.
-Lufada de vento, não – temeu o Elio - prefiro ouvir essa gritaria toda.
-Se a máquina do tempo for generosa, nos transportará para a cidade em que a Rainha se encontra. - desejei.
Em vez disso, fomos enviados para o meio das obras de construção do esgoto de Londres.
-É uma portentosa obra de engenharia, Carlos.
-Concordo, mas eu sou economista, você se formou em ciências jurídicas. O razoável é que se encontrasse aqui o Dieckmann, que é engenheiro, e não, nós. - reclamei da sorte. (*)
-A Inglaterra deslancha economicamente como a maior potência do mundo; e este é o preço do progresso. Tem de haver obras de infraestrutura, como esta, para que um país tenha condições de progredir com sustentação.
-E pensar que mais de cem anos depois disto aqui, que cheiramos em Londres, há países cujos governos não realizam obras de infraestrutura porque não dão votos.
-Carlos, estive em Londres, nos anos 1980 e constatei que o Rio Tâmisa foi ressuscitado. Cardumes de salmão saltavam sobre as suas águas.
-E você comeu algum desses salmões?- fui tomado pela curiosidade.
-Comi, Carlos, mas, se antes eu tivesse passado pelo “Grande Fedor de 1858, não comeria.

(*) Muito estranho esses dois passearem por todo lado e só lembrarem de mim quando estão na fedentina. – disse Dieckmann ao Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, que não teve alternativa se não a resignação absoluta ante tamanha injustiça.


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