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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

2570 - Carta do Sergio



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4370                              Data: 26 de fevereiro de 2014
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CARTA DO  LEITOR

“Acontecimentos recentes me deixaram sem computador, impedindo-me de comentar/responder com a merecida presteza a excelente edição nº 2835 do Biscoito Molhado.
Sendo sincero, devo dizer que nem mesmo a disponibilidade desse diabólico artefato me assegura respostas rápidas. Meu limite tecnológico, hei que confessar, é o liquidificador Walita de três velocidades.
 Mas vamos lá. O que mais gostei naquela edição foi constatar que o amigo captou à perfeição os objetivos que busco alcançar ao conferir às “Melhores Vozes” a sua atual configuração.
Temi, durante algum tempo, estar completamente doido ao apresentar os textos mais ou menos “eruditos” que antecedem cada gravação. Tranquilizou-me um papo com Artur da Távola, que fez elogios rasgados ao formato do programa. Ressalte-se que aplausos do Artur deixam-me sempre um pouco desconfiado. Entre outras muitas qualidades, ele é um sedutor irresistível.
De qualquer forma, o “modelo” do programa me agrada. Eu não teria ânimo para atuar como um D.J. de música clássica. Tenho um trabalho danado, sou pago “a leite de pato', mas fico contente com a repercussão que o programa está alcançando de forma crescente junto à turma dos “bons tempos” que frequentava o Municipal.
Adorei suas observações a respeito de Lucho Gatica/ El Reloj e cia... Nunca havia me aprofundado no tema e o programa está me dando uma chance de fazer uma incursão nesse terreno. Sempre ouvi de meu pai referências elogiosas a cantores da chamada “música popular”. Ele era fascinado por Carlos Ramirez, segundo ele uma das mais lindas vozes que teve oportunidade de ouvir. Elogiava Pedro Vargas, Lucho Gatica, Gregorio  Barrios...  Ressalte-se que estamos falando, quase sempre, de gente que estudou canto. Carlos Ramirez  cantou ópera no Municipal de São Paulo. Pedro Vargas cantou uma “Cavalleria Rusticana” com 23 anos de idade.
Francisco Alves e Carlos Galhardo foram “colegas” de meu pai. Alunos, todos eles, do professor Murillo de Carvalho.
Quando Sérgio Cabral e André Midani (Presidente da Warner) chamaram meu pai para gravar “Ternas e Eternas Serestas”, o primeiro ficava até altas horas da noite na casa do velho para conversar sobre o repertório do disco. Tomou um susto ao constatar que o barítono conhecia tudo no ramo. Eram as músicas que ele cantava desde garoto, acompanhado ao violão por meu avô, engenheiro da Light.
Acertados os ponteiros quanto ao disco, Paulo Fortes sentiu-se na obrigação de estudar as partituras de todas aquelas músicas – Décimo-terceiro trabalho de Hércules, mas ele conseguiu achar todas elas. E tomou um susto. Como eram sofisticadas, e eventualmente difíceis, quando examinadas na pauta musical! Como eram, algumas, difíceis de cantar, nos tempos impostos pelo autor! Que complicados intervalos musicais tem “A Deusa da Minha Rua”! A começar pelo “A-Deusa...” em que a linda música começa... Tudo isso cantado com um pé nas costas pelo excepcional Orlando Silva, o “maior de todos”, na opinião de meu pai...
Queria ter a dicção do Sérgio Chapelin, para não ir muito longe e permanecer ao menos no departamento dos Sérgios. Faço força, tomo cuidado para não dar uma de “Jacy Campos” (lembra?) ou Domingos de Oliveira (outro que tem a dicção de um leão marinho) e tento me fazer entender. Mas nem sempre tudo dá certo. Em algum momento o chiclete trocou de molar e você entendeu que Fernando Corena correu atrás do seu (dele) cão em trajes de Eva. Não foi bem isso. Ele estava em trajes “de época”. Não significa isso que eu esteja conferindo um atestado de masculinidade ao célebre basso-buffo. Penso que ele era espada, mas sigo os ensinamentos de Pedro Simon. Não ponho a minha mão no fogo...
O movimento “Queremos Gigli” saiu-se vitorioso. Contratei o grande tenor para se apresentar nos dias 4 e 7 de julho.
Fico por aqui, reiterando minha admiração pela crônica  sensacional. Grande Abraço. Sérgio Fortes
BM:  Machado de Assis  escreveu um conto que intitulou “Papéis Velhos”. Ainda bem que sou machadiano e segui os seus conselhos, num dos seus romances,  de não jogar fora papéis velhos, por isso, encontrei essa carta datada de 18 de junho de 2007. Como a encontrei?...Escarafunchava eu as gavetas da minha mesa de trabalho, por motivo de mudança de sala, e lá estava a carta  manuscrita pelo Sérgio Fortes que, na época, olhava o computador com desconfiança, hoje, são amigos íntimos.
Apesar de datada, o texto não é datado; falamos de assuntos e pessoas nele aludidos  até hoje. Por exemplo: o Jonas Vieira não fica um Rádio Memória sem lembrar o Orlando Silva. Agora, com essa carta aberta (espero que o Sérgio não se aborreça) com a chancela do grande barítono Paulo Fortes.
Ao mencionado BM 2835 coube o título “Queremos Paulo Fortes”, porque, no seu programa “As melhores vozes do mundo”, Sérgio Fortes não colocara, até então, gravação do grande barítono. Lançamos, dias antes, essa campanha que até o Dieckmann abraçou.
Seriam pruridos de nepotismo que detinha o seu filho?... Bobagem, pois a palavra nepotismo, na sua origem, é católica (até demais) e se refere a sobrinhos, não a pais. Sendo mais claro: ao favorecimento dos sobrinhos do Sumo Pontífice.
No trecho da carta em que o Sérgio alude ao parágrafo do Biscoito Molhado em questão sobre a corrida do baixo Fernando Corena, pelo palco, atrás do seu cãozinho em trajes de Eva, assumimos o nosso rotundo erro. Sérgio culpou, generosamente, a sua dicção, mas, na realidade, o problema adveio da nossa audição que, por vezes, falha, hajam vista casos de surdez na minha família, talvez eu chegue um dia a ser um Beethoven  (num quesito, pelo menos),
Quando editamos o BM 2835, Sérgio Fortes já havido atendido à nossa campanha, colocando no ar a gravação da valsa “Eu sonhei que tu estavas tão linda”. Antes, no seu programa, Sérgio falou do desejo de Lamartine Babo em compor uma opereta, mas ele a pôs de lado quando Francisco Matoso, já doente, lhe mostrou a melodia de uma valsa que precisava ter algumas notas modificadas e de uma letra; Remodelada, Lamartine a entregou para Francisco Alves cantar. Quando imaginávamos que a ouviríamos com ele, veio a surpresa: o cantor era o Paulo Fortes.
E encerramos aquela edição liderando mais uma campanha “Queremos Beniamino Gigli.”
Reiterando: papéis velhos devem ser guardados.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

2569 - a sinagoga



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4369                              Data: 23 de fevereiro de 2014
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NAS INVASÕES HOLANDESAS

Eu e Elio estávamos no meio das invasões holandesas no Brasil.
-Kahal Zur Israel, a primeira sinagoga do novo mundo. - entusiasmou-se o Elio diante dela.
-Uma façanha e tanto do Conde Maurício de Nassau no meio de tanta intolerância religiosa que grassa pelo mundo. - manifestei-me.
-Principalmente da Espanha, que agora domina Portugal, e institui a execrável inquisição. - acrescentou.
-Com os crimes causados pelo fanatismo religioso, as medidas de Maurício de Nassau, aqui no nordeste do Brasil, concedendo liberdade religiosa, são um exemplo para o mundo. - aduzi.
-Um avanço, Carlos.
-Cem anos depois desse ato de tolerância, o filósofo Voltaire fixou residência na fronteira da França com a Suíça; caso os católicos quisessem o seu pescoço, ele fugia para a Suíça, caso fossem os calvinistas que o perseguissem, ele se refugiava na França. - lembrei.
-Sim, Carlos, mas não vamos falar do futuro. - sugeriu e foi adiante no seu discurso:
-E os melhoramentos que Maurício de Nassau realiza em Recife... A Companhia das Índias Ocidentais acertou em cheio quando o nomeou administrador das terras conquistadas.
-Fala baixo, Elio; pensarão que você é traidor.
Isso acontecia em 1637, mas eu e Elio vivemos os ataques holandeses ao Brasil desde o primeiro...
Vimos que, há pouco mais de 10 anos, ou seja, em 1624, a Companhia das Índias Ocidentais enviou uma armada com quase 2 mil homens, sob o comando do almirante Jacob Willekens, com a missão de atacar Salvador.  Com vários pontos de vulnerabilidade, os neerlandeses conquistaram a capital do Brasil com facilidade, aprisionaram o governador-geral Diogo de Mendonça Furtado com o filho e alguns oficiais solidários, e ele foi enviado para a Europa. O nobre holandês Johan Van Dorth exercia agora o governo.
Diante desse cenário, voltei-me para o Elio.
-Sua mãe, Dona Sarita, foi professora de História do Colégio Pedro II, o que ela lhe ensinou sobre essas invasões?
-Carlos, ela me ensinou que, no período histórico que vai de 1580 a 1640, Portugal e suas colônias estavam sob o domínio da Coroa da Espanha, era a “Dinastia Filipina”.
-Sei; Filipina porque o rei espanhol era Felipe II.
Elio prosseguiu:
-Disse-me a minha mãe que quase toda a Holanda estava submetida à Espanha.
-Como quase toda a Holanda? - estranhei.
-Algumas províncias conseguiram a sua independência, mas a República das Províncias Unidas, com sede em Amsterdam, não.
-Com as invasões ao Brasil, eles provam que não estão subjugados. - concluí.
-O conflito surgiu anos atrás e Felipe II, como retaliação, impediu que o comércio espanhol se desse com os portos holandeses. Como Portugal, e consequentemente o Brasil, estava sob o tacão da Espanha...
-Mas os antepassados do Dieckmann não se deram por vencidos.
-Eles, grandes comerciantes, que investiam pesadamente capital na agro-manufatura açucareira do nordeste do Brasil, criaram a Companhia das Índias Orientais, que conseguiu o monopólio do comércio da Ásia. Com o êxito obtido, eles fundaram a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1621, precisamente, e um dos seus maiores objetivos era retomar o comércio do açúcar explorado no nordeste do Brasil.
-E vieram, então, as agressões holandesas ao Brasil colonial.
Minhas palavras ainda ecoavam, quando despontou no horizonte uma armada espanhola de cinquenta e dois navios. Pouco depois, 14 mil homens pisavam o chão de Salvador. A luta era desproporcional, os antepassados do Dieckmann foram derrotados e expulsos do país.
A máquina do tempo avançou cinco anos e me arremessou, junto com o Elio, no mar do Caribe, num navio da frota espanhola que transportava montanhas de prata, principalmente e ouro, que foram extraídas das suas colônias. Nós dois vimos a interceptação dos navios e o saque de toda esse riqueza, perpetrada pelos holandeses sob a ordem do Almirante Piet Heyn.
-Carlos, com a posse dessa riqueza, eles terão recursos para formar uma nova e muito mais poderosa expedição para invadir de novo o Brasil.
Elio não esqueceu as aulas de Dona Sarita. De fato, eles enviaram uma esquadra de 64 navios e a investida se deu na Capitania de Pernambuco, na cidade de Olinda e Recife, o centro de maior produção de açúcar.
Com a vitória consolidada, a Companhia das Índias Ocidentais trouxe da Europa mais 6 mil homens  e mais ainda escravos da África para a exploração da cana-de-açúcar.
Contudo, a resistência dos nativos veio e quem a liderou foi Matias de Albuquerque. Seus homens se concentraram nos arredores de Recife, e, de lá, investiram contra os invasores usando a tática de guerrilha. A alta mobilidade no ataque, com as rápidas retiradas das denominadas “companhias de emboscada”, provocou baixas nos invasores neerlandeses. No entanto, muitos senhores de engenho de cana-de-açúcar estavam satisfeitos com a técnica de administração dos holandeses e, com isso, passaram para o seu lado, destacando-se entre eles Domingos Fernandes Calabar.
Os holandeses, que se fortificaram, tomaram a Paraíba, estendendo suas posses e as forças sob o comando de Matias de Albuquerque baquearam, batendo em retirada até o rio São Francisco.
Nesse contexto, a Companhia das Índias Ocidentais nomeou o príncipe Maurício de Nassau, homem culto e liberal, para governar quase todo o nordeste do Brasil.
Maravilhado com a sinagoga Kahal Zur Israel, Elio rumou para ela, enquanto eu o seguia com passos curtos. Estaquei no portal e, de lá, o vi orando. Uma hora depois, saiu à rua.
Notícias da Europa chegaram ao Brasil: Portugal quebrou os laços que o subjugava à Espanha e assinou uma trégua de dez anos com os Países Baixos.
-Sabe o que isso significa, Carlos?... O domínio espanhol ficou abalado, e a guerra de independência dos Países Baixos recrudescerá.
Com o domínio de todas as etapas da produção de açúcar, os holandeses passaram a investir também nas Antilhas, onde era produzido por menor custo do que no Brasil. Desde 1638, o preço de diversos tipos de açúcar iniciou uma tendência de baixa. Tornando o quadro ainda mais assustador, a safra de 1641-1642 foi dramaticamente prejudicada pelas enchentes que atingiram os canaviais. Tornando o quadro ainda mais desolador, a escravaria foi atacada pela varíola, praga trazida de Angola. Com a queda acentuada do preço, a receita da Companhia das Índias Ocidentais caiu em 1/3.
Os senhores de engenho e lavradores já deviam a Companhia 5,7 milhões de florins, quando Maurício de Nassau, em 1644, agora conhecido como “O Brasileiro”, retornava a Europa.
Nessa conjuntura, a Companhia passou a cobrar as dívidas dos senhores de engenho, o que provocou a Insurreição Pernambucana.
De repente, eu e Elio, estávamos no meio da Batalha de Guararapes.
-Elio, esta batalha junta todos os brasileiros de todas as raças, ricos e pobres; Felipe Camarão, que é índio; João Fernandes Vieira, negro. Disse-me meu professor do ginásio que foi o gérmen do nacionalismo brasileiro.
-Todos chefiados por Vidal de Negreiros, um senhor de engenho endividado que não quer pagar. - ironizou o Elio.
Um tiro de bacamarte, que quase nos atingiu, obrigando-nos a correr para um lugar seguro.
-Carlos, na escola nos ensinarão que Portugal, com os brasileiros, venceu os holandeses. Eles de fato saíram das terras conquistadas, mas no Tratado de Paz de Haia...
Depois das reticências, explicou que Portugal, por esse tratado, teria de pagar, durante 40 anos, oito milhões de florins aos Países Baixos, o que representava 63 toneladas de ouro.
Dito isso, ele rumou para orar na sinagoga  Kahal Zur Israel antes da chegada dos religiosos intolerantes.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

2568 - dito por não dito



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4368                                Data: 22 de fevereiro de 2014
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FRASES E COMENTÁRIOS

“Caráter é aquilo que você é quando ninguém está olhando.”
Esta frase é de Epicuro, filósofo do período helenístico, que viveu de 341 a.C. a 270 a.C. Ela me remete ao que acontece na política brasileira.
O caso da votação para cassar o mandato parlamentar do deputado federal por Rondônia, Natan Donadon, se enquadra perfeitamente na frase do filósofo grego que viveu há mais de 200 anos antes de Cristo.
Quando a votação na Câmara foi secreta, sem que o eleitor soubesse quem estava votando a favor ou contra, o parlamentar, condenado a mais de 13 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, escapou, pois não se chegou aos 257 votos necessários para a sua cassação. Seis meses depois, o mesmo plenário se reuniu com o mesmo motivo, mas, agora, com uma diferença fundamental: a votação era aberta, cada deputado declararia o seu voto. Resultado: dos 468 votantes, 467 decidiram que o condenado deveria perder o seu mandato, enquanto só 1 se absteve.
A mudança do voto fechado para aberto foi o atendimento a uma das exigências das centenas de milhares de cidadãos que foram às ruas protestar contra os descalabros dos nossos governantes. Conheciam o caráter do político brasileiro e o que ele faz quando ninguém está olhando.

“A burocracia é a força gigantesca colocada em ação por tolos.”
Balzac investiu com toda razão contra a burocracia, mas, no que concerne aos burocratas, parece-nos que não usou a palavra exata. Eles não são tolos e, em muitos casos, embolsam um dinheirão com o excesso de papéis. Quanto ao fato de a burocracia ser uma força gigantesca, não resta a menor dúvida.
No século seguinte, outro grande escritor, Franz Kafka, denunciou a burocracia com textos mais persuasivos.
Tcheco de língua alemã, Kafka se destacou entre tantas outras coisas, como o literato que expôs a poderosa e quase invisível máquina de moer seres humanos, a burocracia, que, ao longo do século XX, passou a controlar insidiosamente as sociedades ocidentais e orientais.
No Brasil, houve uma pífia reação quando, em 1979, foi criado o Ministério da Burocratização, uma secretaria do poder executivo federal do Brasil, que contou com Hélio Beltrão como ministro. Ele ficou de 1979 a 1983, no cargo, antecedendo João Geraldo Piquet Carneiro e Paulo Lustosa.
O ministério durou menos de 7 anos, foi de 18 de julho de 1979 a 14 de fevereiro de 1986.
Pelo menos, não passou em brancas nuvens, pois na sua duração foram criados o Juizado das Pequenas Causas e o Estatuto da Pequena Empresa.

“O excesso de leitura priva a mente de toda a elasticidade, assim como a contínua pressão de um peso afrouxa uma mola.”
A frase acima do filósofo alemão Schopenhauer demonstra, na nossa visão, a sua contrariedade com aqueles que se encharcam de obras alheias prejudicando a sua, ou até mesmo incapacitando o leitor voraz de elaborar uma.
O filósofo Kant cunhou um pensamento, quase um século antes, que vai ao encontro do que diria Schopenhauer:
“Não devemos ler escritos sobre a matéria acerca da qual estamos refletindo, do contrário atamos o gênio”.
O que serve para as letras também serve para as notas musicais.
O Beatle Paul McCartney disse que, pelo fato de não possuir a fabulosa cultura musical do maestro e também compositor Leonard Bernstein, não corria o risco de pensar que era da sua autoria um trecho melódico que estava nos escaninhos da sua memória.
Assisti, certa vez, a um programa do canal português RTP em que um professor ensinava a uma aluna a música de Chopin, não na proximidade do piano, mas caminhando, como se usasse o método de ensino de Aristóteles.
Em dado momento, ele alude ao fato de o grande compositor Robert Schumann ter enviado a Chopin, dentro de um envelope, as partituras de uma das maiores obras compostas para o piano, a sua Kreisleriana. Em seguida, o mestre olha para a sua discípula.
-Sabe o que Chopin fez?... Nada, nunca retirou aquelas partituras do envelope.
Foi isso certamente o que aconteceu; com muito tempo dedicado a dar aulas por necessidade de dinheiro, Chopin não podia desperdiçar o tempo que lhe restava com obras alheias, tinha de criar as suas.
Victor Hugo se referiu a um romance de Balzac, afirmando que dele se poderia elaborar outros livros e o considerou um gênio. Não havia necessidade de ler os 88 romances que o escritor criou para chegar a essa conclusão.  Victor Hugo, com toda certeza, leu uma ou outra obra de Balzac, se não, ficaria não digo sem a elasticidade da mente, mas sem tempo para realizar o seu monumental trabalho tanto na prosa quanto na poesia.

Quando os homens de grande reputação estão errados, a pior tática para alguém é estar certo.”
Assim escreveu o economista canadense John Kenneth Galbraith quando aludiu a oposição de Keynes às políticas impostas pelos mandantes. Um deles foi Winston Churchill que, quando Chanceler do Erário Público, impôs uma política para a libra esterlina que Keynes previu como uma bobagem desastrosa para o Reino Unido e o tempo mostrou que ele estava 100% correto na sua previsão.
Mas Keynes demonstrava ter sido um dos homens mais inteligentes e lúcidos do século XX desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Convocado para integrar a delegação britânica na Conferência de Paz, por ser um funcionário público promissor, aceitou.
 Eis o que escreveu John Kenneth Galbraith:
“O ambiente em Paris nos primeiros anos de 1919 era de vingança míope, indiferente às realidades econômicas e isso horrorizou Keynes, como também o horrorizariam seus colegas de delegação e os políticos. Em junho, ele renunciou e voltou para casa e, nos dois meses seguintes, compôs o maior e mais polêmico documento dos tempos modernos. Era contra a cláusula de reparação do Tratato de Versailles e, conforme ele considerou, a paz cartaginesa.”
  No seu livro “As Consequências Econômicas da Paz”, publicado antes do término do ano de 1919, Keynes investe contra os governantes que elaboraram esse tratado de paz. Sobre o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, disse “este cego e surdo Dom Quixote”. O representante francês, Clemenceau, mereceu dele estas palavras: “Ele tinha uma ilusão – a França; e uma desilusão, a humanidade”. O primeiro ministro britânico Lloyd George recebeu as palavras mais duras, porém, ele as retirou do livro por questão de sobrevivência profissional.
Keynes anteviu os grandes males que os vencedores da Primeira Guerra Mundial cometiam.
“A Europa estaria apenas se punindo a si mesma ao exigir, ou procurar exigir, muito mais dos alemães do que estes tinham capacidade real de pagar. Um refreamento por parte dos vencedores não seria uma questão de compaixão, mas sim de interesse próprio elementar.”- escreveu Galbraith.
O tempo mostrou tragicamente o quanto Keynes estava certo. Com o tratamento dado pelos vencedores ocidentais aos países derrotados na Segunda Grande Guerra Mundial, Alemanha e Japão, foi finalmente colocado em prática o que Keynes pregara 26 anos antes.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

2567 - Chalaça



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4367                                Data: 20 de fevereiro de 2014
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125ª VISITA À MINHA CASA

Logo que o vi materializando-se na minha frente, chamei-o de Chalaça, ele me pediu para que dissesse o seu verdadeiro nome, Francisco Gomes da Silva, depois, com uma risada, afirmou que o seu nome não era tão verdadeiro assim e aceitou o cognome Chalaça.
-Chalaça, para Carlota Joaquina, você era o bastardo insinuante e ela, para você, a espanhola maldita. Como chegaram a esse ponto?
-Primeiramente, penetrei no palácio misturado aos criados honorários do Paço. Logo depois, Dom João me nomeou Moço de Reposteiro. Eu estava com 20 anos de idade.
-Para tanto, você trazia uma razoável bagagem intelectual?
-Em Santarém, Portugal, onde fui preparado para ser padre, na minha adolescência, aprendi filosofia e latim, e falei com fluência vários idiomas: francês, espanhol, italiano, inglês... Mas não foi só por isso que impressionei o Príncipe Dom João.
-E, posteriormente, seu filho Dom Pedro. - acrescentei admirado com ele, que mais parecia um personagem de Ponson du Terrail.
-A corte era um ninho de cobras com grupelhos rivais. Dom João suspeitava das tramas peçonhentas da esposa e me incumbiu de espioná-la.  Saí-me tão bem, no papel, que, com 25 anos de idade, ou seja, em 1816, eu já era Juiz da Balança da Casa da Moeda.
-Você tinha uma inimiga perigosa.
-Sim e senti isso na própria pele. Sabendo que o meu ponto fraco não era só o calcanhar, mas todo o corpo, quando me via em frente às belas mulheres, não resisti à dama do Paço, Dona Eugênia de Castro e pus-me a fornicar numa sala do palácio: uma armadilha. Com a denúncia de Carlota Joaquina, o rei nos viu nus, expulsou-me e baixou uma ordem: eu deveria ficar a uma distância mínima de dez léguas da corte.
-E você, Chalaça?
-Fui para Itaguaí onde vivia um vigário que eu conhecia desde os tempos de Santarém.
-Diz a história que você voltou para a corte, Chalaça.
-Meu verdadeiro pai, Visconde de Vila Nova da Rainha conseguiu mitigar a ira do rei contra mim.
-Seu verdadeiro pai?!... Sua vida foi mesmo rocambolesca.
-A minha vida é romanesca desde que nasci. Sou filho do visconde, na época barão, com uma criada de quarto. Minha mãe, com 19 anos de idade, me registrou como filho de pai desconhecido. Meu pai não me assumiu como filho, mas me manteve como tal. Quando se casou com uma nobre, ele se viu forçado por ela a enviar a minha mãe para a África e a sumir comigo, que estava com oito anos de idade.
-Já um joguete das artimanhas cruéis da sociedade. - comentei.
-Como meu pai gostava de mim, encontrou uma hábil solução: pagou oito mil cruzados a Antonio Gomes, seu protegido e ainda o empregou como ourives da Casa Real, para registrar-me como filho legítimo.
-O que explica seu nome Francisco Gomes da Silva.
-E também explica a minha ida para um seminário de Santarém, onde estudei para ser padre e adquirir a bagagem cultural de que falávamos.
-Chalaça, você nasceu e morreu em Portugal, mas a maior parte da sua vida foi no Brasil. Como chegou aqui?
-Eu estava com dezesseis anos de idade quando soube que, em Lisboa, havia preparativos de fuga da corte real para o Brasil. Escapei do seminário e rumei para a capital. No caminho, os franceses me prenderam, mas consegui me evadir. Sempre fui mestre nisso.
-E como você conseguiu embarcar com a corte para o Brasil?
-Eu tinha pouco tempo, pois cheguei em cima da hora do embarque. Ladino, como sou, consegui achar meu pai adotivo que me colocou numa das embarcações que fugiam de Napoleão.
-E como foram seus primeiros anos aqui?
-Meu pai se estabeleceu como ourives e eu trabalhei com ele. Como as mulheres e as noitadas exerciam uma atração irresistível sobre mim, meu pai brigou comigo.  Saí de casa e abri uma tenda de barbeiro na Rua do Piolho.
-Hoje, chama-se Rua da Carioca.- disse-lhe.
-Lá, trabalhei tanto quanto o Fígaro do “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini; fui cirurgião, dentista, apliquei sanguessugas e ventosas...
-Largo al factotum. - brinquei.
-Depois, dei um jeito de me insinuar no meio da corte.
-E a sua amizade com o futuro imperador Dom Pedro I?
-Depois de servir ao pai, servi ao filho, que amava as mulheres, ele era um femeeiro como eu.
-Mas você pretendeu retornar a Portugal com a corte de Dom João VI e isso fez Dom Pedro sentir-se traído.
-Ciúmes, ciúmes que passaram. Sendo seu secretário particular, Dom Pedro não tirava uma palha do lugar sem mim. Eu escrevia para ele discursos, textos impressos nos jornais, além de lhe servir de intérprete quando era obrigado a receber estrangeiros.
-Mesmo os seus detratores, Chalaça, reconheciam que você era articulado tanto falando quanto escrevendo.
-Pouco antes da independência do Brasil, Dom Pedro já havia reatado a velha amizade e, assim, tornou-me tenente em 1823, capitão em 1824 e coronel-comandante em 1827.
-Você, Chalaça, como alcoviteiro de Dom Pedro, apresentou-lhe as mais apetitosas donas, e uma delas foi Maria Domitila de Castro Canto e Melo, a futura Marquesa dos Santos.
-Ele a conheceu através de mim.
-Chalaça, há quem diga que você, pactuado com a futura Marquesa de Santos, extraíram o maior lucro possível de Dom Pedro I.
-A minha vida prescinde de imaginações férteis de tão atribulada que foi.
-Contudo, a sua influência sobe o imperador cresceu ainda mais, haja vista os títulos honoríficos e a dinheirama que obtiveram você e a Maria Domitila.
Francisco Gomes da Silva se limitou a ouvir-me.
-Você escandalizou a Europa, principalmente a França, quando pediu a mão da filha de Luís Felipe, o rei cidadão, para Dom Pedro I, quando já se sabia, na Europa, o quanto a falecida imperatriz Maria Leopoldina sofrera na mão dele.
-Foi um escândalo: um imperador fora dos eixos representado por um finório na corte francesa. - soltou uma gargalhada.
-Depois da rainha Carlota Joaquina, você arrumou outro inimigo ardiloso: o Marquês de Barbacena.
-Com o gabinete popular, eu influenciava na tomada de importantes decisões, com isso, cresceu o número de inimigos. O Marquês de Barbacena conseguiu afastar-me da corte, em 1830, convencendo Dom Pedro I a me nomear embaixador plenipotenciário do Império no Reino das Duas Sicílias. 
-Nunca mais voltou ao Brasil?
-Nunca; na Europa, escrevi três livros, dois deles arrasando a reputação do Marquês de Barbacena.
-Ficou um ódio encruado por ele.
-Mas eu não estava derrotado, meus inimigos nunca sentiram o gosto de me ver liquidado. Em 1833, quando Dom Pedro já estava em Portugal, para que a sua dinastia não perdesse o trono, convocou-me para ser secretário da casa de Bragança.
-Parece que a única mulher com que você não compartilhou com Dom Pedro foi a digníssima imperatriz Maria Leopoldina.
-Também disseram que eu tive um caso com Dona Amélia de Leuchtenberg, a segunda imperatriz do Brasil?...
-Você se tornou uma lenda, Chalaça, com isso, todas as elucubrações passaram a ser factíveis.
Como se preparava para partir, apressei a última pergunta.
-E a sua morte?
-Só me lembro de ter dito isso na extrema-unção: “Padre José, eu amei demais as mulheres e o dinheiro...”
E se foi.