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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5249B Data:
16 de dezembro de 2015
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A
ESCOLA 5-2 SANTA CATARINA
Eram
três as escolas públicas no bairro, geometricamente localizadas como as três
pontas de um triângulo: a Santa Catarina, em Paula Mattos, a Julia Lopes de
Almeida, perto do Dois Irmãos e a Machado de Assis, no Curvelo.
Da
“Escola Julia Lopes de Almeida”, homenagem à primeira escritora
profissionalizada no Brasil, pouco ou nada sei. A localização muito afastada do
núcleo que frequentávamos, não deixou outra lembrança além do conhecimento
de sua existência. Há alguns anos, participando de um movimento dos artistas
junto aos “Aprendizes de Santa Teresa”, estive lá. Foi a única vez em que pus meus
pés na velha escola, justa homenagem ao perfil educador de Julia de Almeida,
precursora da mulher moderna e independente.
Já
da “Escola 4-3 Machado de Assis”, lembro de alguma coisa e alguma história,
graças aos meus primos Fernando e Carlos, que cursaram nela até o quarto ano primário. A escola
granjeava, na época, de prestígio no tocante ao ensino, o que minimizava o
aspecto físico de um projeto pouco feliz. Nada nele inspira o lúdico ou dá
espaço à fantasia. O prédio é prismático, paredão pintado de cinza, janelas só no primeiro andar. O único acesso
é através de uma monumental porta em aço; um bloco duro e hermético também
cinzento, que veta qualquer tentativa de se perscrutar o que se passa no seu
interior. Sempre me sugeriu um reformatório, mas não foi o que meus primos
viveram lá, ou a lembrança que de lá trouxeram.
Carlos
gostava, sim, da escola, das brincadeiras no vão imenso que compreendia o andar
térreo. À hora da entrada, não sabe o
porquê, o hino tecia loas à América.
“Deus salve a
América, terra de amor e paz.
Verdes mares,
florestas, lindos campos cobertos de flor.
Berço amigo, da
bonança, da esperança e do altar.
Deus salve a
América, meu céu, meu lar.”
Como
era norma na rede pública de ensino, a bandeira era hasteada à entrada do turno
e arriada à saída. As cerimônias contavam com alunos perfilados junto ao
mastro, dois manejando os cordões do mastro e o outro, como porta bandeira.
Carlos teve a honra de participar na condição desse último, cabendo-lhe receber
o pavilhão já dobrado e levá-lo até o gabinete da Diretora. Pompa e
circunstância.
Nós,
moradores de Paula Mattos, estudávamos no final do ramal da mesma linha, poucos
metros abaixo do Largo das Neves.
A
Escola Pública “5-2 Santa Catarina” foi
inaugurada em 1935, como Ginásio Estadual Santa Catarina. Ocupa um terreno de
boas dimensões, bem no meio da Rua das Neves (atual Rua Eduardo Santos),
ladeira íngreme que descia em direção à Rua Paula Mattos. Podia-se entrar pela
Rua das Neves, pela entrada principal, ou pelo portão dos fundos, na Rua
Fluminense (atual Rua Pintora Djanira). O prédio deixava uma boa área livre nos
fundos, servindo para a recreação das turmas do jardim de infância e outra, duas
ou três vezes maior na frente, onde todo o primário brincava. A fachada da
escola era virada para essa área maior, de tal forma que, estrategicamente, do
gabinete da Diretora, tinha-se boa visão dela. Parte da área de lazer era
cimentada, sendo o resto chão de terra batida, local preferido dos meninos.
Tínhamos ainda um grande pátio coberto, onde antes do início das aulas, as
turmas ficavam em forma para entoar os hinos. O prédio da escola tinha três
andares: no andar térreo, a sala da Diretoria, o gabinete dentário, salas de
aula, salas dos jardins de infância, banheiros feminino e masculino. Uma escada
levava ao segundo andar, ocupado apenas pelas salas de aula e, num último lance,
ao refeitório e à cozinha. Quase não subíamos ao refeitório, porque nossa
merenda vinha de casa, mas era um espetáculo, a mesa comprida ladeada pelos
alunos, regalando-se com mingaus de sagu, canjica, ou tapioca. Sempre me causou
espanto o cardápio da merenda e jamais quis ao menos prová-lo.
A
hora da merenda era cercada de rituais: o primeiro, formação de fila para ida
aos banheiros, sempre acompanhada pela professora da turma. Com as sacolinhas a
tiracolo, personalizadas pelos nomes bordados íamos, de três em três, primeiro
aos sanitários, depois às pias para lavar as mãos. Quando no caminho de volta à
sala de aula, entoávamos a canção:
“Estamos
com as mãos lavadas, com água e sabão.
Já
podemos merendar, preparemo-nos então.
Merenda
bem sadia e muito gostosinha; -Quem foi que preparou?
Foi
a nossa mamãezinha.”
Assim
merendados, corríamos ao pátio e às brincadeiras. O terreno parecia do tamanho
do mundo e aquele mundo, muito divertido.
Aliás,
no segmento musical, a escola fornecia cantos e hinos da melhor qualidade,
inesquecíveis para os alunos que por lá passaram. Sob a supervisão da
inspetora, os uniformes avaliados e aprovados, ou não, seguíamos para o pátio
coberto, turma por turma, enfileiradas, perfilando-nos para o início do canto
do Hino Nacional. Os hinos variavam, mas sempre exaltando o patriotismo e
celebrando os feitos históricos da História do Brasil. Com o mesmo espírito e
fervor solenes, soltávamos a voz louvando, ora a Bandeira, ora a Independência,
ora a Proclamação da República. Depois
do hino, já nos preparando para deixar o pátio, era a vez de exaltar o estudo,
razão maior de estarmos ali. Então o saudávamos com afã, entoando a singela
melodia:
“Cantemos felizes, a canção do dia.
Hoje é terça feira (4ª,5ª,6ª...)
dia de alegria.
A escola nos ensina que devemos
estudar.
O estudo é nossa vida; estudemos a cantar...”
Nossas
professoras eram rigorosamente preparadas
para o ofício e a maioria, realizada e feliz com ele. Algumas mais
severas, mais exigentes, mas sobretudo muito amigas e empenhadas no sucesso de
seus alunos. A Diretora, a despeito do cargo ocupado, jamais se valia da
posição para intimidar quem quer que fosse pela arrogância. Seu gabinete era
mais frequentado em busca de suporte financeiro do que em razão de séria
repreensão, embora essa também se desse na medida justa e quando
necessária. Mas, assim que Dona Odette
assomava na entrada da sala de aula, levantávamos ligeiramente apreensivos...
Dona
Carlinda usava uns óculos que não disfarçavam seu tique nervoso: piscava em
série, franzindo os olhos; Dona Isabel era uma figurinha miúda, feições
delicadas, cabelos curtos e escuros sempre impecáveis; Dona Carmem fazia jus ao
nome emblemático: exuberante, vaidosa, cabelos louros, batom e unhas vermelhas,
sapatos de saltos bem altos. Estas,
entre outras, foram professoras que nos ensinaram muito além do que exigia o
currículo escolar.
Especial
era a “Caixa Escolar”, instituto que consistia em cobrar uma taxa mensal dos
alunos, criando um fundo para socorrer os mais necessitados. A cobrança era
arbitrada pelos próprios pais ou responsáveis pelos alunos, assumindo mensalmente
o valor da contribuição. Nenhuma discriminação. Filhos das famílias
tradicionais, dos comerciantes, dos prestadores de serviços, dos domésticos,
enfim, éramos todos iguais perante o corpo docente e perante nós mesmos. Outros
personagens que povoam as memórias escolares são os serventes. Infelizmente não
gravei seus nomes, com exceção do seu Celestino, mas as imagens permanecem
nítidas. Ao final do turno, suspendiam as cadeiras, varriam o chão das salas e
corredores, limpavam os banheiros, levavam o lixo, guardavam o que os alunos
esqueciam sobre as carteiras. Na única ocasião em que me vi “sem saída”, a
presença de uma servente foi meu consolo no desamparo da escola vazia e
observar o seu trabalho, meu único derivativo. A visão da sua figura e o
barulho familiar de uma faxina foram minha sobrevivência ao castigo e lamento
não ter tido a oportunidade de jamais lhe ter agradecido.
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