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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5239 Data: 26 de novembro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PATOS E GALINHAS – Quando a minha mãe retornou da costumeira
visita que fazia à mãe dela, fez um escarcéu dos diabos: mataram o seu pato de
estimação.
Hoje, quando ela toca no
assunto, não entra em detalhes, diz apenas que o meu pai, aproveitando que ela
saíra, me fez levar o pato até uma mulher que matava os bichos e os preparava
para serem saboreados pelos seus fregueses. Não me lembro de ter saído pela Rua
Cachambi levando um pato pelas mãos até o matadouro da tal mulher. Eu era
pequeno demais, o que explica as falhas na minha memória quando tento
reproduzir esse caso, para executar essa missão ingrata. Talvez o meu pai, sim,
tenha juntado as asas do pato na sua mão fechada e o levou para ser executado e
posto na panela, enquanto eu apenas lhe fazia companhia.
Em um ponto a minha mãe não
deixa a menor dúvida: eu trouxe o pato de volta para casa já preparado para ir ao
forno e ser comido.
A minha mãe passou uma
descompostura no meu pai, mas ele, com toda certeza, comeu o pato, eu, também –
nós éramos boa boca; quanto à minha mãe, tenho dúvidas, mas deve ter comido:
pato, naquela época, saído da panela, não era comida que se recusasse.
Soube, muitos anos depois,
lendo algumas páginas sobre o Marquês de Sade, que ele, com nove anos de idade,
comeu o seu pato de estimação, na maior das ignorâncias, quando a verdade lhe
foi dita, vomitou-o e ficou perturbado a ponto de perder a fome por alguns
dias. Quem pensa que o Marquês de Sade comia pato cru, cuspindo as penas
enquanto o sangue da ave lhe escorria pelos cantos da boca como baba, está
redondamente enganado. A sua família nobre convocou um padre para lhe convencer
que os animais eram diferentes das pessoas, mas ele não ficou convencido. Adulto,
mudou bastante.
A minha mãe, evidentemente,
não se transformou numa Marquesa de Sade.
Lembro-me muito bem, porque
esse fato se deu mais recentemente, início dos anos 70, que, numa visita
domingueira à família da irmã caçula da mamãe, almoçamos um pato assado. O
marido da minha tia criava patos e galinhas no quintal da sua casa em
Jacarepaguá. Quando a minha mãe soube que um daqueles patos fora para a panela,
não deu, evidentemente, uma reprimenda no cunhado, como o fizera com o meu pai
muitos anos antes, mas instigou seus sobrinhos, garotos cujas idades variavam
de 3 a 7 anos, a dizer que o pai deles era mau por matar o pato, e eles
disseram: “Papai é mau, papai é mau”. O meu tio fechou a cara.
Depois da primeira garfada,
tudo entrou em paz naquele almoço de domingo.
Recordo-me bem, apesar do
acontecimento ter sido anterior ao primeiro que aqui narrei, que a minha mãe
degolava, com facas bem amoladas, as galinhas que comíamos. Naquela época,
compravam-se as galinhas vivas que, depois, eram, geralmente, mortas pelas
donas de casa e, por elas, cozinhadas.
A galinha era um prato
requintado para as famílias remediadas. “Apareça lá em casa, compade, que vô
mandá matá umas galinha pra almoçá.” - assim dizia um texto do meu livro de
português da primeira série ginasial. “A galinha é um prato de luxo,
principalmente, no interior”- explicou nosso professor.
Uma das galinhas degoladas
pela minha mãe, no quintal da nossa casa na Rua Cachambi, ainda correu alguns
metros sem o pescoço deixando-nos apavorados. Creio que foi a última vez que a
minha mãe matou uma ave na vida.
Sempre que eu tocava nesse tempo em que ela
matava galinha, a minha mãe se perturbava e me dizia não saber por que fizera
essas maldades.
Era a necessidade, que nos
obriga a fazer o que não queremos.
Diferentemente da viagem que
fiz com o pato, a da galinha, pronta para ser digerida, ficou bem marcada na
minha mente. Ficamos mais ou menos um mês, acampados na casa da minha avó, em
1957, porque a minha mãe perdeu o filho, na quinta gravidez e correu sério
risco de vida durante alguns dias. Lá, em São Cristóvão, ela, com flebite, era
submetida a sessões de luzes infravermelhas emitidos por uma lâmpada. Nós, as
crianças, tínhamos de ficar longe, mas certa vez, deixaram a porta do quarto entreaberta
e eu vislumbrei a minha mãe deitada na cama num quarto iluminado por uma cor
diferente. Tudo me pareceu misterioso.
Então, incumbiram-me de
levar, numa tigela, pedaços de uma galinha cozida até uma vizinha que morava
perto da Rua São Januário. E lá fui eu, pela Rua General Padilha, já de noite,
carregando a tigela coberta por uma toalha de cozinha. Quando eu passava por
uma vila, tropecei e caí; a tigela se espatifou na calçada e os pedaços de
galinha se espalharam pelo chão. Como um autômato, juntei cacos e pedaços da
galinha, sujos de terra, na toalha da cozinha e fiz o caminho de volta.
Agoniado, eu imaginava os piores castigos. Nesse dia, meu pai, em vez de ir do
trabalho para a nossa casa no Cachambi, foi para São Cristóvão e foi a ele que
entreguei o embrulho do meu fracasso. Ele fez uma piada bem humorada sobre a minha
ação desastrada; a minha avó, que era a maior prejudicada, não reclamou. E tudo
terminou bem.
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