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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5244 Data: 01 de dezembro de 2015
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SABADOIDO
2ª PARTE
-Daniel, você vem do dentista ou de um baile de
carnaval?
-De um baile de carnaval. - respondeu a Gina por ele.
-Carlão, o dentista disse que ia usar a broca na minha
boca, sem anestesia, eu tremi nas bases como costumo tremer quando sai a
escalação do Fluminense com o Gum e não doeu nada.
-Há vezes é o Gum quem decide, com um gol de cabeça, a
vitória do Fluminense.
-Essa, no consultório do dentista, Carlão, foi uma das
vezes. Gol do Gum.
Gina saiu da cozinha, mas o Daniel permaneceu comigo e
com o Claudio.
-Eu imaginei, quando aqui cheguei e não ouvi sua voz,
que era um daqueles sábados que você tem de ir à Casa da Moeda fazer a manutenção
dos computadores, mas o Claudio me disse que não.
-Mas, daqui a pouco, telefonam de lá pedindo
instruções ao Daniel. - manifestou-se o Claudio.
-Espero ficar muitos sábados e domingos sem ir lá,
Carlão.
-Como eu chego ao meu trabalho muito cedo, costumo ligar
o computador de uma colega, assim, quando ela chega, basta bater o ponto sem
perda de tempo.
-Computador é como jogador de futebol: precisa de
aquecimento antes de entrar em atividade. Aliás, Carlão, a seleção húngara de
54 entrava em campo arrasadora, fazendo dois, três gols nos primeiros minutos,
porque foi a primeira equipe de futebol a se aquecer nos vestiários.
-Por que você não bate o ponto dessa colega? -
voltou-se o Claudio para mim.
-Quem bate o ponto do outro, se descoberto, é
denunciado à Corregedoria, em Brasília, e corre o risco de sofrer um Processo
Administrativo Disciplinar.
-O Sérgio Porto dizia: “Ou nos locupletemos todos ou
restauremos a moralidade”. - lembrou meu irmão.
-No Facebook, algumas pessoas que eu conheço bem,
convivi um tempo com elas, bradam insistentemente pela restauração da
moralidade porque não estão se locupletando.
-O Facebook é uma nojeira. - gritou a Gina, que ouviu
a minha voz, sem aparecer fisicamente.
-Dizem que essa frase não é bem do Sérgio Porto. -
falou meu irmão.
-Li, há muito tempo, Claudio, uma crônica do Otto Lara
Rezende em que ele escreveu que o Sérgio Porto se baseou no “Serafim Ponte
Grande” do Oswald de Andrade.
-A Gininha esculhamba o Facebook, mas sempre navega
nela.
-Fala baixo, Daniel, se não, ela escuta.
-Eu estou falando, velho.
-Como eu dizia, chego e ligo o computador dessa minha
colega, mas, nesta semana, veio a mensagem de atualização. Passaram uns
quarenta minutos e o diabo do computador ainda atualizava não sei o quê. Pensei
comigo: ela vai chegar e perder minutos preciosos no ponto eletrônico.
-Essa sua colega chega tarde.
-Não, Claudio, eu é que chego muito cedo.
E prossegui:
-Aproveitei que o maior conhecedor de informática do
recinto chegara e lhe pedi ajuda. Ele premiu o botão de desligar um tempo e
soltou, assim tudo se acertou e o ponto eletrônico apareceu na tela.
-Ele deu o boot. - explicou o Daniel.
-Então, no dia seguinte, o computador voltou a se
atualizar. O tempo passando e ele se atualizando.
-Ele estava lendo o Extra, a Hora do Povo, o New York
Times, o Washington Post... - pilheriou meu irmão.
-O que fiz eu? Em vez de recorrer de novo ao tal
colega, resolvi dar o boot de que falou o Daniel. Resultado: a tela
enegreceu completamente, depois congelou com uns dizeres.
-Fez a maior lambança, Carlão.
-Agi como aprendiz de feiticeiro. Você viu esse
desenho, Daniel, do filme “Fantasia” em que o Mickey é o aprendiz de
feiticeiro?
-Muitos consideram o maior desenho de todos os tempos.
- interveio o Claudio antes de o Daniel responder.
-Claro que vi, Carlão, o Mickey coloca as vassouras
para carregar os baldes d' água por ele, depois de ter visto o feiticeiro usar
os seus sortilégios. Mickey perdeu o controle das vassouras e o lugar estava
virando um mar.
-Corri até o feiticeiro, esse colega especialista em
informática e ele colocou tudo em ordem.
-Ele, Carlão, lhe deu, depois, uma vassourada na
bunda?
Em vez da resposta ao meu sobrinho, disse outra coisa.
-Vocês sabiam que “O Aprendiz de Feiticeiro” é um
poema do Goethe. Vou falar em alemão, se a minha língua cair, devolvam-me, por
favor.
-Fala, Carlão.
-Der Zauberlehrling.
-Já ouvi pronúncias melhores. - brincou meu irmão.
-A letra da “Sabiá”, do Chico Buarque, é inspirada na
“Canção do Exílio”, do Gonçalves Dias que, por sua vez, se inspirou na balada
de Mignon, um romance de Goethe.
-Goethe está em todas.
-Ele é um dos maiores portentos da literatura
universal, Daniel.
-Vou tocar teclado para relaxar depois dessa hora no
dentista. - soergueu-se da cadeira e foi para o seu quarto.
-Claudio, você viu essa última listagem com os
melhores filmes brasileiros de todos os tempos?
-São todos uma porcaria. - gritou mais uma vez a minha
cunhada
-Eu sei que “Limite” foi o primeiro, e “Deus e o Diabo
na Terra do Sol”, o segundo. - disse ele.
-”Limite”, eu vi numa fita VHS que me foi emprestada.
O Mário Peixoto, o diretor, forjou uma carta em que o Eisenstein enaltecia o
filme.
-Pelo visto, não precisava forjar.
-De alguns filmes desse rol eu me lembro.
-”Vidas Secas” está?
-Se não estivesse, Claudio, essa relação não poderia
ser levada a sério.
E prossegui:
“Cidade de Deus”, de que eu gosto muito, está, mas não
na colocação em que puseram, eu colocaria entre os três primeiros. “Terra em
Transe” está também.
-Carlinhos, eu achei esse filme tão chato.
-Lá estava também “Rio, Zona Norte”. Lembro-me quando
assisti a esse filme no Cine Cachambi com a mamãe e a Dona Maria, a nossa
vizinha espanhola. Na volta para casa, as duas falaram mal do filme o tempo
todo. Nunca tinham visto nada pior.
-Nesse filme, o Grande Otelo cai do trem e morre
quando batucava um samba, se não me engano, do Zé Keti.
-Eu me recordo dessa cena, Claudio, não do samba que
ele batucava.
-O Orson Welles considerava o Grande Otelo o maior
ator brasileiro.
-Você falou nisso, Claudio e me veio à mente uma
crônica do Ruy Castro. Ele escreveu que o Grande Otelo se queixava de o Orson
Welles nunca o chamar para um filme seu depois de tal elogio. O Ruy Castro,
então, faz umas especulações sobre os filmes dirigidos pelo Orson Welles que
poderiam ter o Grande Otelo como ator. Disse que o Grande Otelo poderia ser uma
das bruxas do “Macbeth”...
-Para quem fez Macunaíma... - interferiu meu irmão.
-Depois, o Ruy Castro veio com uma ideia doida: o
Grande Otelo poderia atuar como “Otello”, mas, devido à sua megalomania, Orson
Welles preferiu ser pintado de preto e atuar como protagonista.
-Acho errado um branco fazer o papel de um negro.
-Concordo, Claudio, mas o Grande Otelo era muito
baixinho para atuar como o mouro de Veneza, o vencedor de grandes batalhas
contra os muçulmanos, casado com bela e loura Desdêmona.
-Carlão, prepara-te para sair que eu vou pegar o
carro. - era o Daniel, que parara de tocar há algum tempo, com a Gina, que
reaparecia na cozinha.
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