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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5241 Data: 28 de novembro de 2015
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129ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
Haydn esboçou um sorriso
bonachão e eu lhe perguntei:
-Não era só a música, e as
mulheres?...
-Apaixonei-me por um das minhas
alunas, mas ela estava destinada ao convento. Casei-me, então, com a sua irmã
mais velha, Maria Anna Keller.
-Foi um desastre?
-Se eu não ficasse atento,
ela faria papelotes com as minhas partituras. Mais tarde, arrumei uma amante,
Luigia Polzelli, que era cantora. Quando enviuvei, senti-me livre.
-Você ficou também preso à
família Eszterházy por 29 anos. Como foi isso?
-O conde Morzin, com
problemas financeiros, dissolveu o seu estabelecimento musical, e eu fiquei
desempregado, mas não por muito tempo. A família dos príncipes de Eszterházy,
uma das mais proeminentes da nobreza húngara, me contratou como mestre de
capela assistente.
-Os termos do contrato eram
duros: você vestiria a libré e as suas criações seriam destinadas ao seu
patrão.
-Na prática, não o foi,
porque o príncipe Paul II Eszterházy se encantava com a arte musical; não me
tratou como criado e não impediu que as minhas obras fossem divulgadas fora do
círculo familiar.
-Mas Paul II Eszterházy não viveu muito.
-Veio, depois dele, o seu irmão
Nikolaus I Eszterházy, que gostava ainda mais de música; deu-me todas as
condições precisas para eu desenvolver o meu dom criativo. Quando o mestre de
capela titular morreu, eu assumi o seu posto.
-Você tinha inteira
liberdade para lidar com a orquestra privativa do príncipe Nikolaus I
Eszterházy?
-Inteira – acentuou. Eu
compunha para ela, eu a regia; assim, cheguei a criar uma centena de sinfonias.
-Como mestre de capela da
família Eszterházy, o que mais você fazia?
-Eram muitas as tarefas:
execuções de música de câmara, de óperas que eu compunha para o teatro do
palácio da família, etc.
-Mesmo com o seu quase
confinamento no palácio dos Eszterházy, localizado a 80 quilômetros de Viena,
as suas criações chegaram a Paris.
-Eu podia reger minhas obras
em Viena. Quando chegou um convite da rainha Maria Antonieta para eu me
apresentar diante da corte francesa, o príncipe não opôs objeção, e viajei até
lá.
-Foi quando você, compositor
profícuo que era, compôs as seis sinfonias de Paris.
-A Sinfonia nº 85 ficou
conhecida como “La Reine”, porque era a favorita da rainha Maria Antonieta. –
acrescentou.
-Quando você conheceu
Mozart?
-Em 1781; ele estava com 25
anos de idade, e eu com 49 anos.
-Você, que foi o maior
influenciador do estilo de música, durante um grande período de tempo, também
influenciou Mozart.
-Ele me chamava de Papá, mas
o seu gênio era tão divino que não pude deixar de sofrer também influências
suas.
-Mozart compôs e lhe dedicou
seis quartetos de cordas, denominados “Seis Quartetos de Haydn”, uma homenagem
a quem criou essa formação.
-Eram obras-primas. Quando
ouvi as óperas compostas por Mozart, deixei-as de lado no meu trabalho de
compositor. Como eu poderia escrever óperas que chegassem perto da magnitude
das dele?
-Ninguém conseguiu, Haydn?
-Certa vez, eu disse a seu
pai, Leopold Mozart: “Digo-o perante Deus e como homem honesto, que vosso filho
é o maior compositor que eu conheço em pessoa ou em nome, porque tem o gosto e
a maior das ciências de composição”.
-Certo, você admirava o divino
Mozart, mas era recíproco. Contam que um desses compositores catava com lupa uma
nota errada nas partituras das suas obras e corria, satisfeito da vida, para
mostra-la a Mozart. Este, um dia, se enfureceu com essa mesquinhez, e lhe disse
mais ou menos isto: “Se juntarem eu e você não se fará meio Haydn”.
-Ele estava muito irritado
mesmo. – comentou com um sorriso.
-Não bastassem os quartetos
de corda e as sinfonias, você criou a forma sonata de composição, que é
dividida em três grandes partes: exposição, desenvolvimento e reexposição com subdivisões
em cada uma dessas partes. Digo isso grosso modo, pois, em matéria de música,
sou apenas um diletante.
-A ideia da forma sonata de
composição foi de Carl Philipp Emanuel Bach.
-Sim, Haydn, mas esse
esquema de composição que dominou o pensamento da música erudita é devido quase
que exclusivamente a você, que a desenvolveu na sua extensa obra. – salientei.
Ele se limitou a sorrir
generosamente.
-Mozart, que era maçom, o
levou para a maçonaria?
-Eu era católico, mas Mozart
me convenceu. Ele não precisava falar muito, bastava me mostrar uma nova
criação sua que eu já ficava convencido de qualquer coisa vinda dele.
-E o seu contrato com os
Eszterházy?
Em 1790, o príncipe Nikolaus
I Eszterházy faleceu. Quem o sucedeu tinha um espírito de pedra, não gostava de
música, desfez-se de todo o arcabouço musical da família e me liberou.
-Depois de 30 anos
praticamente.
-A seu favor, diga-se, pagou-me
uma pensão pelos bons serviços prestados aos Eszterházy.
-Bem, Haydn, seu contrato
foi rompido, você estava viúvo de uma mulher que embrulhava carne com as suas
partituras... Sentia-se, enfim, livre como um passarinho.
-Fui chamado, logo em
seguida, para trabalhar na Inglaterra em ótimas condições financeiras. Ao me
despedir de Mozart, ele me disse que estava com um mau pressentimento.
"Sinto-me muito bem, ainda pretendo viver bastante.” E ele: “Não é a você
que me refiro, Papá”. Ordenei-lhe que arrancasse essas nuvens negras do
espírito e que tratasse de compor bastante.
-No ano seguinte, ele
morreria com 35 anos. Foi a maior tragédia da história da música ele partir tão
jovem.
-Lá, na Inglaterra, compus
as minhas doze últimas sinfonias.
-O seu triunfo foi tal que
os ingleses queriam que você se estabelecesse lá como Handel o fizera alguns
anos antes.
-Eu já estava numa idade
avançada, beirava os 70. Dinheiro não era mais problema para mim. Voltei para a
minha terra com a motivação de não deixar nunca de compor.
-E compôs obras de grande
fôlego: “A Criação”, “As Estações”, o “Te Deum”.
-Compus ainda nove quartetos
de cordas, seis missas que dediquei a um Esztereházy que gostava tanto de
música como aqueles com que trabalhei.
-Você só parou quando
morreu?
-Era a minha intenção, mas
uns sete anos antes da minha morte, a debilidade física me impossibilitou de
pôr no papel as ideias que ainda jorravam da minha mente.
-Você deixou esta vida em
1809, na sua casa, em Viena com 77 anos de idade.
-Morri ouvindo um bombardeio
infernal que contrastava inteiramente com as harmonias que eu procurei por toda
a minha vida.
-Era o exército de Napoleão
bombardeando Viena.
Não ouviu as minhas últimas
palavras, pois já havia partido para bem longe.
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