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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5069 Data: 21 de
março de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXI
BARATA – No casarão da minha avó, construído no início do
século XX, eu me deparei com baratas cascudas. Eu sofria com elas o terror que,
poucos anos depois, me causariam os vampiros das telas de cinema. Na casa da
sua irmã, de onde, reza a lenda dentro da família, o Ary Barroso transmitiu uma
partida de futebol, porque a direção do Vasco proibiu a sua entrada no estádio
de São Januário, também havia cascudonas. O meu pai, sobrinho dela, contava
que, na festa do casamento dessa minha tia-avó, uma barata posou na parte de
cima do seu vestido. Quando descobriram que não se tratava de um broche, foi um
Deus nos acuda; tropeçaram no tripé para câmara fotográfica do Ibrahim Sued, na
época, um simples fotógrafo.
-Nascimento, uma velha cega quase
quebrou a minha câmara. - queixou-se ao meu avô, colega dele de jornal.
Como fui carregado pela minha mãe à
casa dessa tia-avó poucas vezes e, principalmente, nunca dormi lá, não houve
problemas para mim, mas no casarão da vovó... Eu tinha de dormir lá. Ela
enviuvou muito cedo, nem conheci meu avô, que faleceu em 1946; por isso, para
que não ficasse sozinha, a minha mãe
escalava ora a mim, ora a minha irmã, para lhe fazer companhia quando estávamos
em férias escolares.
Havia lá duas salas: uma, na altura da
metade da casa, a de jantar, e a outra, com janelas que se abriam para a Rua
General Padilha, era a de lazer, onde ficavam a televisão, poltronas e sofás.
Entre as duas salas estavam os quartos. Um corredor estreito, onde se achava
uma estante repleta de livros, ia de uma sala a outra; em seguida, vinha a
cozinha e, depois, o banheiro que era pequeno, cabia nele apenas a privada e a
pia para lavar o rosto. A casinha, de tamanho dos apartamentos de hoje, se
localizava no meio do quintal, perto da jaqueira e era lá que se tomava banho.
No corredor e na cozinha, à noite, as
baratas cascudas faziam a festa, Atravessá-los, nas horas noturnas, requeria de
nós, crianças indefesas, uma coragem dos soldados que desembarcaram na
Normandia em 6 de junho de 1944. O que fazer se sentíssemos uma necessidade
fisiológica no meio da noite?... Previdente, a minha avó deixava penicos para
ela e os convidados. Sempre considerei aqueles vasos de louça, ferro ou do
material que fosse, nojentos, mas preferia tapar o nariz do que sentir o meu
corpo transformado em aeroporto de cascudonas.
Nas casas em que residi, eu me deparei
com duas ou três baratas dessa espécie, se tanto; havia, isso sim, as de cor de
verniz, que pareciam subdesenvolvidas comparadas em robustez com aquelas.
Apareceu, é verdade, na nossa casa na Rua Chaves Pinheiro, uma barata branca
que a minha irmã, sempre romântica, disse que estava vestida para se casar.
O pavoroso era que, entre as baratas
envernizadas, surgiam algumas periplanetas americanas, as voadoras.
Voltando à Rua Chaves Pinheiro. Certa
tarde, acomodado numa poltrona, eu conversava animadamente com um colega de
trabalho, quando a minha atenção convergiu para algo que entrou voando pela
janela. É um pássaro? É um avião? É o Super-Homem? Não. É uma barata. O telefone caiu das minhas
mãos, corri em busca de abrigo, enquanto o meu interlocutor não tinha a mínima
ideia do que acontecia comigo.
A chegada intempestiva dessas voadoras
provocava um rebuliço dos diabos, pois elas se desfaziam da virilidade de todos
os homens lá de casa, inclusive a do meu pai. Ele, ao tentar matar uma delas,
que pousara na parte alta da janela da sala, na Rua Chaves Pinheiro, usou uma
força desproporcional, provocada pelo medo e estilhaçou o vidro sem matar a dita
cuja. A minha mãe, que sofria e ainda sofre de fobia de lagartixa, era a única,
entre nós, a enfrentar as periplanetas americanas até matá-las. Houve, então,
uma espécie de pacto entre os meus pais: ele matava as lagartixas e ela, as
voadoras; o meu pai ainda contemporizava com argumentos que as lagartixas são
úteis aos humanos, que comem os mosquitos, mas não adiantava. O jeito era
afastar, com a vassoura, as lagartixas para o lugar mais distante possível e
dizer para ela, depois, que foram exterminadas.
Não sou casado, mas já dormi no sofá da
sala algumas vezes. Isso acontece quando entra uma barata voando pela janela do
meu quarto.
PÁSSAROS – Não sou como aquele personagem de “Os Pássaros”, de
Alfred Hitchcock, que confundiu melro com corvo. No entanto, não entendo muito
de pássaros, embora sempre houvesse gaiolas penduradas nas cozinhas ou nas
varandas das casas em que morei.
Os mais remotos, aqueles que se fixaram
na minha retentiva, foram um sabiá e uma jandaia. O meu avô se mudou do
Cachambi para o Jardim Botânico e deixou as aves silvestres para o filho, no
apartamento 103, que ocupamos saindo do 201.
Embora eu não saiba diferenciar o canto
do sabiá de algumas aves canoras, digo que ela tem a mais bela voz entre os
pássaros. A explicação para essa incongruência eu creio que está no fato de o
canto daquele sabiá ter se entranhado tanto nos meus ouvidos infantis, que eu
disse que não havia nada mais bonito e fui pelos anos afora repetindo isso
mesmo não o ouvindo mais. Sim, embora a minha vida fosse povoada de gaiolas,
não apareceu mais uma só sabiá; eram só canários, curiós e coleiros. Da
jandaia, só me recordo dos sons estridentes que emitia.
Mortas essas aves que meu pai herdou,
ele as substituiu por coleiros, e os batizava com nomes dignos de um livro de
autoestima para aves canoras: “Possante”, “Caruso”, Gigli”, “Schippa”.
A preferência da minha mãe recaía sobre
os canários. Quando já morávamos na Rua São Gabriel, ela teve um canário belga
que tinha o design (se assim podemos dizer) do avião Concorde; e ela,
naturalmente, lhe deu esse nome.
O meu irmão Claudio preferia os curiós,
e na sua casa, já casado, batizou uma fêmea de Tia Hilda – xará de uma das tias
das crônicas do Mauro Rasi; e um macho, de Boticão de Ouro, homenagem a um
craque do hipódromo da Gávea que foi sacrificado porque fraturou uma pata em
uma corrida domingueira.
Tivemos três gatos, inúmeros cachorros,
muitos passarinhos, e, hoje, onde moro, só resta um bicho: uma canária, já
idosa, que a minha mãe chama de Maria Chiquinha.
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