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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5064 Data: 11 de
março de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XVIII
MONTORITE – Não sei se este verbete já foi incluído no Aurélio
ou no Houaiss, mas entra neste microdicionário. Quem acompanha a história
recente da política brasileira conhece, sobejamente, o seu significado. O
ex-governador de São Paulo, André Franco Montoro, trocava tanto os nomes das
pessoas – o jornalista Jânio de Freitas, por exemplo, foi chamado por ele de
Jânio Quadros – que cunharam a palavra “montorite”.
Não sei se os leitores já perceberam
que eu sofro de montorite. Como o Biscoito Molhado passa pela minha revisão
(nem sempre, às vezes esqueço) e, durante um bom tempo, pela revisão do Elio
Fischberg, as minhas crises de montorite eram limadas a tempo, mas, numa
conversação, numa fala de improviso, não há como evitá-las.
É um mal hereditário?... Bem, minha
mãe, algumas vezes, quando me chamava, só acertava o meu nome na terceira
tentativa, ou seja, depois de dizer os nomes dos outros dois filhos dela. Minha
irmã era, ainda é, bem pior: chama-me de Luciana e Verônica, suas filhas, até
chegar ao Carlinhos, quando estamos conversando. Mas não chega a se configurar
um caso de montorite, pois são essas trocas apenas; ou seja, convivendo
diuturnamente com as filhas, seus nomes vêm à sua boca automaticamente. Não é o
meu caso.
A minha montorite não surgiu quando eu
era estudante, nunca chamei, por exemplo, o Felipe Camarão de Felipe Macarrão,
ou o Frei Caneca de Frei Careca, mas sim quando eu já estava com 30 anos de
idade. O meu primeiro sintoma, se a memória não me atraiçoa, aconteceu quando
eu estava em São Paulo a trabalho. Lá, eu falava com uma colega de serviço,
aqui, no Rio, pelo telefone, quando me avisaram que o doutor Jobim, um
funcionário do Ministério do Planejamento, precisava fazer uma ligação. “Vou
desligar porque o Danton Jobim, precisa do telefone.” Horas depois, ela ralhava
comigo, relembrando seu tempo de professora: “Que diabo de Danton Jobim é
este?” Expliquei-lhe que ele fora senador do MDB pelo Rio de Janeiro e que
morrera anos atrás, que falei o seu nome sem perceber. Depois, ela se acostumou
com as minhas montorites.
Outra colega minha de trabalho
reportou-se aos desenhos animados da Warner Brothers, a que assistia quando menina, para me nomear, em vez de
“Hortelino Troca-Letras” de “Hortelino
Troca-Nomes”. Era bem mais simpático. Caso alguém esboçasse alguma irritação
comigo ao ver seu nome alterado, julgando-me um engraçadinho, eu logo o
acalmava: “Desculpe-me, eu sou o Hortelino Troca-Nomes”. Se eu me desculpasse
citando a minha montorite, eu não seria tão eficaz, pois poucos sabem quem foi
André Franco Montoro, apesar de ele ter sido uma das grandes personalidades da
política deste país.
Escrevi, parágrafos acima que, neste
periódico, este meu mal não aparece, devido às revisões, mas um dia as revisões
falharam: chamei o Jonas Vieira, o apresentador do Rádio Memória, programa
dominical da Rádio Roquette Pinto, de Jonas Rezende, o pastor. Jonas Vieira se irritou, ao contrário do Danton
Jobim do meu trabalho e me parece que não metabolizou até hoje essa minha
troca.
Quantas vezes, nessas revisões do
Biscoito Molhado, mudei o nome do Sérgio Fortes para Sérgio Britto e tive de
corrigir. Mas não seria um erro muito grande, garante o Dieckmann, porque os
dois guardam muitas semelhanças.
PIPA- Minha mãe não ficava um
domingo sem visitar a sua genitora em São Cristóvão. Quando não era a minha
irmã que ela carregava consigo, era eu, o que acontecia muitas vezes, pois a
minha avó era a minha madrinha.
Naquele domingo, a sua acompanhante foi
a minha irmã. Quando as duas retornaram da Rua General Padilha, ao cair da
tarde, traziam uma pipa de tamanho maior do que as que eu costumava cobiçar nas
lojas. Uma pipa de papel fino de cor azul, rabiola e muita linha cordonet,
que era mais forte do que a linha 10 - a preferida dos soltadores de pipa
experientes - e ainda mais potente do que a linha 24.
As duas contaram que, passando por uma
rua de São Cristóvão, toparam com essa pipa voada (assim denominavam a pipa
cuja linha tinha sido cortada por outra) na calçada, sem que tivesse aparecido
um só moleque correndo atrás dela, o que era um fato inteiramente anormal,
impossível de acontecer, por exemplo, no Cachambi.
Minha mãe pegou a pipa e minha irmã
puxou a linha infindável, enquanto a enrolava num pedaço de madeira.
Entrando lá em casa com o achado,
ganhei-o, como primogênito, de presente.
Eu, que até então nunca soltara pipa,
coloquei-a no alto, provavelmente com uma providencial ajuda do vento.
Pipa nas alturas, solto a plenos
pulmões, o grito provocativo de todo moleque:
“Tá com medo, tabaréu,
É de linha de carretel”.
Muito tempo depois vim saber que
tabaréu é caipira ou soldado que, por pouca experiência, não faz as coisas
corretamente.
Em poucos minutos, uma pipa se
aproximou da minha com más intenções. Não fugi da briga, aliás, eu nem tinha o
traquejo de soltador de pipa para evitar o ataque inimigo. Eu era pipeiro de
primeira viagem.
As duas pipas se embolaram uma na
outra. Apesar dos meus bracinhos de garoto de menos de 10 anos de idade, com
uma intensidade incomum, eu “bracei” (verbo do mundo da pipa que quer dizer
puxar repetidamente, alternando os braços, uma linha). Então, deu-se o impasse:
as linhas das duas pipas se esticaram sobre o terreno baldio que ladeava o muro
da minha casa e de um posto de gasolina. Um puxão resolveria aquilo e foi o que
aconteceu. Puxei, a linha adversária se rompeu, e as duas pipas vieram para a
minha mão. Enlouqueci de alegria e o berro de todo soltador bem sucedido
irrompeu da minha garganta por diversas vezes: “Eeeeera nego”. Ou a expressão
era “Cheira, nego”? Nós nos limitávamos a repetir os bordões ancestrais sem nos
importar com a sua exatidão.
Logo, apareceu o Paulinho Cauby, filho
do dono de um armarinho de tecido, localizado nas proximidades, pedindo a sua
pipa, a que eu cortara, argumentando que ele estava com linha 10 pura, sem cerol,
que não pretendia que a sua pipa cruzasse com a minha. Pediu com tanta
educação, que a minha mãe se juntou a ele no pedido.
De noite, reproduzi o meu feito épico
para o meu pai e lhe disse que só devolvi a pipa do garoto porque ele me pediu
chorando.
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