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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5068 Data: 20 de
março de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XX
CAÇA-GAZETEIROS- Meu pai comprava muitos gibis com personagens da
Disney, mas eu e meus irmãos nos identificávamos mesmos era com as revistas do
Bolinha e da Luluzinha; no entanto, eu nunca imaginaria que, no ginásio, me
depararia com um caça-gazeteiro parecido com o Seu Miguel da revista, até o
nome era o mesmo.
1963 foi o ano em que o Visconde de
Cairu mais se aproximou da disciplina militar que a direção do colégio buscava
há três anos (provavelmente há mais tempo, pois eu entrara lá em 1961). Seu
Miguel, o novo inspetor, contribuiu muito para isso. No meu primeiro ano lá,
quem inspecionava os alunos era o Seu Oscar. Ele, sempre com um charuto fedegoso
na boca, tinha mania de monitores; escalava um monitor por cada turma e que
responderia por ela. Não era uma delegação de poder e sim uma maneira esperta
de diminuir o seu trabalho. Lembrou-me uma professora do curso primário
ordenando que a turma de 40 alunos juntasse as carteiras, como se mesas fossem
de restaurantes, em grupo de 5. Cada quinteto ficava sob a responsabilidade de
um aluno designado por ela. Assim, eu fiquei com o dever de controlar o
Joaquim, filho do açougueiro da Rua Honório, que já mostrava, desde garoto, que
não seguiria o bom caminho.
Pelo menos, com Seu Oscar, nunca fui
monitor. No segundo ano ginasial, ele continuou, mas, em 1963, entrou no seu
lugar o Seu Miguel, bem mais novo e com muita disposição para executar a sua
função. Ele era o nosso Inspetor Javert.
O que fazíamos nos anos anteriores ir
para o pátio e por lá ficar proseando por um bom tempo, enquanto não se
encerrava uma aula aborrecida, acabou. Retardar a entrada na escola porque a
traquinagem estava muito boa, nem pensar. Em 1963, a sirene tocava antes da 7h
da manhã e tínhamos de entrar, colocando nossas cadernetas numa cesta de
tamanho industrial, sob a vigilância implacável do Seu Miguel e elas só seriam
devolvidas com o carimbo de “compareceu”, ao meio-dia em ponto. Não havia um só
buraco nas cinco aulas diárias.
Eu fumava, com 15 anos de idade já era
viciado e a hora do recreio era o momento em que eu me enfiava no banheiro,
onde havia fileiras de privadas, com as suas respectivas portas, para
satisfazer o meu vício. O fedor da nicotina neutralizava o cheiro da merda. Mas
como fumar se o Inspetor Miguel era onipresente? Meus maços de Continental
levavam mais tempo para terminar, houve isso de bom.
Estudando de manhã, eu costumava acordar
cedo. O meu pai fazia o café e eu já estava de pé rumo ao chuveiro. Eu lhe
fazia companhia no café com leite, que ele gostava pelando. Para esfriar a
minha bebida, eu buscava um sopro comparável a do Lobão, quando tentava
derrubar a casa dos Três Porquinhos; ainda assim, a pele do meu céu da boca
descascou umas três vezes.
Um dia madruguei. Eu estava no topo da Rua
Felipe Camarão, onde havia uma das entradas do colégio, quando a escuridão da
noite ainda se fazia presente. Encostei-me numa árvore e vi chegando o Inspetor
Miguel. Ele não me distinguiu nas sombras; para ele, ali estava um vulto,
talvez de um marginal, pois quebrou o ritmo das suas passadas e passou a
caminhar vagarosamente, com toda cautela.
Eu meti medo no Inspetor Miguel e tinha
de contar o meu feito para todo o mundo.
RATOS – Bastava ver ratos, desde criança, para ficar
assustado. Diziam-me que, encurralado, ele atacava com fúria. Embora eu não
tivesse coragem para perseguir um rato até deixá-lo sem saída, eu ficava ainda
mais temeroso com essa reação.
Estivemos fora da nossa casa da Rua
Cachambi, em 1957, por um mês, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos,
devido a um mal sucedido parto da minha mãe daquele que seria o seu quinto
filho quando ela quase partiu com ele. Nesse período, ficamos todos na casa da
minha avó e, depois, houve uma divisão: Claudio e Lopo foram para a moradia de
um tio, na Urca, eu e minha irmã continuamos onde estávamos.
Meu pai ia, esporadicamente, ao nosso
lar para averiguar como andavam as coisas. Nessas idas, ele se assombrava com o
número de ratos, até mesmo ratazanas, mortos no quintal. Os nossos vizinhos
espanhóis do 203 alimentavam diariamente o Big e o Veludo, também o Chiminho, o
nosso gato, e a rataria faminta se achegava aos pratos com restos de comida.
Encerrado o tratamento da flebite da
minha mãe com lâmpadas de luz infravermelha, retornamos à nossa casa. Era noite
e me recordo de ter vislumbrado a vizinha do 101, espionando a nossa chegada pelas frestas da
janela. Na manhã do dia seguinte, meu pai, com uma pá de pedreiro, recolhia os
ratos mortos no quintal e os varejava, com muita força, sobre o muro, para o
terreno baldio.
Dentro de casa, notávamos ruídos
estranhos, eram camundongos; eles se esticaram ao máximo, numa flexibilidade
impressionante e conseguiram passar por baixo das portas. A grande maioria
deles se achava na cozinha, e meu pai preparou, então, uma festa. Ele me
colocou com meus dois irmãos sobre uma mesa, chamou o Big, que prontamente se
apresentou, e trouxe também o Chiminho.
Com todas as saídas da cozinha vedadas,
meu pai passou uma vareta comprida entre os móveis e a parede, e os camundongos
caíam no chão, guinchando e correndo sem rumo. Big e Chiminho tratavam de agir.
Nosso cachorro impressionava pela agilidade, matava ratos numa proporção de 3
por 1 para o Chiminho. O Big nos impressionava pela precisão, por acabar com
aqueles animais com uma só dentada, como se acertasse sempre no ponto vital.
Meu pai alardeava que, mesmo as ratazanas mortas pelo Big no quintal, não
sangraram, que não havia uma só estraçalhada. Matar ratos era um esporte para o
Big e nós tivemos a felicidade de vê-lo em ação. Foi um espetáculo.
Com o número crescente de cachorros e
gatos em casa e a nossa presença, os ratos ficaram longe de nós. Vi, anos
depois, muitos ratos, nas minhas corridas, depois caminhadas, feitas antes de o
sol vir do oriente. Corriam para os bueiros ou saíam deles, alguns pareciam as
ratazanas das crônicas do Nélson Rodrigues: “gordas e prenhes caçadas a
pauladas”.
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