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sexta-feira, 13 de março de 2015

2810 - Tabaquiano Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5060                                Data:  05 de março de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XVI

 

VIBRAÇÃO – Era a glória para mim: a aula de Educação Física seria uma partida de futebol de salão na quadra do Visconde de Cairu. Eu ainda morava na Rua Cachambi, portanto só havia, até o momento, jogado no quintalzinho do nosso apartamento; então, aquele ginásio, para mim, tomava proporções de um Maracanã. Além disso, o público das minhas peladas caseiras eram os vizinhos espanhóis do 203, isso quando eles se debruçavam no parapeito da varanda, o que nem sempre acontecia. Assim, aqueles 30 ou quarenta alunos que ficavam em volta da quadra, esperando a vez deles de jogar – eram duas partidas de 30 minutos cada uma – se tornaram, na minha imaginação, um público de Vasco e Flamengo.

O professor apitou e deu início ao jogo. Fui para frente, não quis saber de jogar na defesa. Não sei se consegui desarmar algum adversário, dar um passe, o que não se apagou da minha memória foi a bola que sobrou na minha frente, perto do traçado da área. Chutei com toda a força que existia na minha perna direita; a bola entrou entre o goleiro e a trave. Deus do céu, vibrei alucinadamente, eu gritava como um possesso.

Isso foi em 1961, antes de agosto (tenho como referência mnemônica a data de renúncia do Jânio Quadros, quando recebi a notícia da minha mãe na saída do colégio). Nos últimos meses desse ano, fui morar na Rua São Gabriel numa vila que se comunicava, por um beco, com a Rua Americana. Lá, revi o Sílvio, um garoto comprido, que era da primeira série do Visconde de Cairu, mas não da minha turma, e que participara daquela partida.

Um dia, quando formávamos um grupinho na Rua Americana, ele se referiu ao meu exagero na comemoração daquele gol de meses atrás. A minha vibração havia sido infinitamente mais marcante do que o gol, um mero chute de bico que contou com a incompetência do goleiro, mas eu, até então, pensava que o gol é que tinha sido histórico.

 

PROLIXO – Como eu sofria com aquelas redações, no curso primário, que vinham com uma exigência da professora entre parênteses: mínimo de 20 linhas. Muitas vezes, eu só tinha ideia para desenvolver o tema proposto em 10 linhas e me torturava; se não escrevesse mais, a minha nota seria baixa. Tentava ter mais ideias, mas aquela imposição das vinte linhas me travava. Pensei em recorrer aos garranchos, em encompridar as palavras, mas era tarde, se eu passasse a borracha nas que havia escrito, para dobrar a sua extensão, corria o risco de esquecê-las.

O Professor Alcyr, aquele que dava estalos na cabeça dos alunos, no curso de preparação para concursos de admissão ao curso ginasial, declarou, certa vez, para nós, que aqueles que escrevem ótimas redações são os que sabem mentir. Quanto mais mentiras, melhor a redação – enfatizava. Mas eu só vim a estudar com ele dois, três anos depois, além disso, ele era professor de matemática, do Pedro II, precisamente e a língua portuguesa não era o seu forte. Mesmo que já aprendesse com ele, não me ajudaria muito a vencer a barreira das 20 linhas.

Ser prolixo?... Era outra tentativa. Mesmo Jeová foi prolixo. A maçã no paraíso, era apenas um símbolo: Adão e Eva tiveram relações sexuais, assim, quando Deus lhes disse, expulsando-os do Éden: “Crescei e multiplicai-vos”, estava sendo prolixo.

Como eu pretendo ser o mais fiel possível aos fatos que vivi, não direi aqui que repetia as dez linhas redigidas com outras palavras para alcançar as vinte linhas, mas que eu me escorava na prolixidade não tenho dúvidas.

Com a leitura de romances, melhorei muito, meu problema passava a ser, agora, a verborragia e o sofrimento de cortar o que havia escrito, de tornar o texto enxuto.

 

DECEPÇÃO – Seu Dilmar morava na casa 23 e nós, na casa 20, na vila da Rua São Gabriel. Ele e Dona Luci, sua esposa, tinham apenas uma filha, Vera. Ela, o extremo oposto do pai, era introvertida, mas  para nós, pessoas injustas, uma antipática.

Seu Dilmar nunca o disse, mas saltava aos olhos, sentia falta de filhos do sexo masculino e, tacitamente, adotou a mim, Claudio e Lopo, os três garotinhos, como éramos conhecidos na Rua Chaves Pinheiro no tempo em que residíamos na Cachambi. Assim, se o carro do Seu Antônio, compadre dele da casa 22, um Austin, ficava à sua disposição, saía com ele pelas ruas, chamando-nos, sempre que possível, para ocuparmos todos os bancos. Era uma festa, além das gozações que ele fazia com os transeuntes de todas as idades, homens e mulheres, parava em alguma padaria para o lanche: refrigerante com empada.

Por eu ser o mais velho dos três, identificava-se mais comigo. Era a época do televizinho e assisti a muitos programas na sua casa com ele e Dona Luci, que também gostava muito de mim. O TV Rio Ring, do Luiz Mendes e Léo Batista, que eu via na casarão da minha avó, no final da década de 50, passava, nesse início da década de 60, a ser visto por mim na casa do Seu Dilmar.

Com o seu inseparável charuto Suerdieck na boca, Seu Dilmar, sob a varanda, um puxado nos fundos da sua casa, reunia os amigos para jogar damas, dominó, ou sueca e ouvir as transmissões radiofônicas do turfe. Eram eles Seu Jorge, um dos nossos vizinhos, motorista de ônibus, e um senhor que morava numa casa de madeira, na Rua Americana, cujo nome me foge. Eu me juntava a eles - os meus 15 anos não se constituíam em obstáculo; meu irmão Claudio era, às vezes, requisitado a se reunir com o grupo, por ser um bom jogador de damas e sueca.

Esse relacionamento com Seu Dilmar, a identificação de gostos, levou-me a colocá-lo no patamar dos amigos imprescindíveis.

Então, veio o dia em que nos encontrávamos no meio da vila e ouvíamos uma gritaria estranha. Um sujeito de pernas compridas e finas, alto, magricela correu para perto de nós com uma turma engrossada por moleques que gostam de ver o circo incendiado atrás dele gritando pega ladrão. Ele foi agarrado sem muita dificuldade e, nesse momento gritou umas palavras incompreensíveis. Era um pobre coitado.

Seu Dilmar afastou algumas pessoas que o agarraram, não porque teve misericórdia e sim porque também queria bater, e bateu com vontade enquanto xingava aquele pobre ladrão de galinhas.

Foi uma decepção para mim. Continuei seu amigo, mas não era mais a mesma coisa.

 

 

 

 

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