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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5073 Data: 26 de
março de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXIII
TREM – Acostumei-me a andar nos trilhos; deslocava-me sempre
de bonde. Eu, na adolescência, só percorria, praticamente, três caminhos: Méier, onde ficava a escola; Centro, para o tratamento dos dentes e compra de
livros - o ônibus ficava, então,
esquecido por mim - e quanto ao terceiro, que era São Cristóvão, não havia
jeito, eu tinha de pegar o ônibus, comumente o 292, pois seria alongar
acentuadamente as distâncias se eu optasse pelo bonde.
Assim, quando o governador da
Guanabara, Carlos Lacerda, acabou com os bondes em 1965 (*), foi um baque para
mim.
-Voltei aos trilhos com o trem, uma
década depois.
Eu tinha encerrado as provas do segundo
grau do artigo 99, quando acompanhei um colega e vizinho até o trabalho dele no
escritório do tio que ficava na Central do Brasil, fomos de trem. Perguntei-lhe
se havia uma faculdade por perto (o vestibular para as escolas do governo já
havia passado, e eu não queria perder tempo). Damião apontou o dedo para os
lados da Praça da República:
-Lá tem o “Siri Cozido”.
O Google só apareceria décadas depois,
por isso tive de consultar diversos conhecidos para saber o porquê daquele
cognome depreciativo. A maioria dos consultados disse que os alunos do Colégio
Pedro II criaram esse apelido porque as alunas da escola técnica em
contabilidade usavam vestidos rubros e blusas encarnadas. Mas ali não era uma
faculdade em que se andava à paisana? - intriguei-me. Soube, então, que lá não
só havia uma faculdade de direito, uma de economia, como esse colégio do 2º
grau e que o apelido se estendeu até os cursos superiores. Quando o meu médico,
Dr. Jerônymo, relembrando os seus velhos tempos, me contou que estudava
Medicina na Praia Vermelha, mas se desviava, às vezes, do caminho, para namorar
as meninas uniformizadas do “Siri Cozido”, não tive mais dúvidas: as faculdades
nada tinham a ver com isso.
Ainda assim, a fama de boate de tudo
aquilo, abrangido no acrônimo S.U.E.S.C., me desanimava.
-Rapaz, foi lá que o Mário Henrique
Simonsen se formou. - incentivavam-me.
Na verdade, aquele que, para mim, era o
maior economista do Brasil, dava aulas de economia na Fundação Getúlio Vargas e
já assessorara o ministro do Planejamento, Roberto Campos, na área da economia,
com o diploma de engenheiro, apenas. Necessitava do diploma de economista,
assim, matriculou-se lá, no “Siri Cozido”, onde aparecia apenas nos dias das
provas, haja vista que os seus conhecimentos excediam em muito os dos
professores. Em 1968, conseguiu o seu diploma, que era apenas um papel para
aquele que tinha como discípulos economistas com doutorados em universidades
dos Estados Unidos e da Europa.
-O que faz o aluno não é o colégio, é
ele próprio. - garantiram-me, quando eu me mostrei dubitativo.
Acredito que o maior motivo para eu
iniciar meus estudos na área econômica, na Praça da República, foi o trem. Eu
pegava o ônibus Méier-Maria da Graça na porta da minha casa, saltava perto da
estação do Méier, pegava o trem até Central do Brasil de onde rumava para a
faculdade.
As primeiras aulas se iniciavam às 7
horas da manhã, então, uma hora antes lá estava eu espremido nos vagões pelos
trabalhadores em sua grande maioria. Eu me sentia confortável em estar
misturado entre aquele pessoal que falava baboseiras em alto volume e
gargalhavam com piadinhas idiotas comportando-se mal educadamente?
Evidentemente que não. Muitos eram trabalhadores, repito, contribuíam para
levar o Brasil para frente, enquanto alguns milionários o levavam para trás,
mas eu não me sentia bem entre eles. Não me recordo quem disse que não era uma
pessoa do povo e sim uma pessoa que pensa para o povo, que luta para que as
pessoas tenham acesso pleno à cultura e educação, e saiam da situação em que se
encontram, subentenda-se que, assim, melhorariam o seu comportamento.
Contudo, não desisti do trem; durante
todo o meu primeiro ano na Faculdade de Economia.
Havia, nos vagões, umas argolas para os
passageiros se segurarem, que eram chamadas de chupetas. Só vim a revê-las
agora nos trens chineses do metrô. Ao procurá-las, atualmente, reporto-me aos
trens da Central do Brasil, quando, ao apoiar-me nelas, eu enfiava a mão
espalmada com os cinco dedos unidos na chupeta para abri-los, em seguida,
quando ela envolvesse o meu pulso. Certa vez – retorno aos anos passados - um
sujeito de maus bofes agarrou a chupeta de tal maneira que impedia a retirada
da minha mão. Notei que seu gesto foi proposital, que era uma provocação. Tudo
bem, eu não vou saltar antes da última parada e deu para ignorar o ignorante e
evitar um aborrecimento naquela hora da manhã.
Quem saltou antes do tempo foi uma
senhora; a leva que saiu na estação de São Cristóvão foi de uma intensidade de
correnteza de rio que eu só ouvia os seus gritos desesperados: “Eu não vou
saltar aqui... Eu não vou saltar aqui...”. A coitada teve de esperar o trem
seguinte.
Lugar vago no banco era impensável
quando eu me enfiava nos trens a partir da estação do Méier; eram tantos os
passageiros que mal se via os bancos, o que dizer em se sentar num deles. O
problema maior dessas aventuras, para mim, de me deixar agoniado, era evitar
que os meus órgãos genitais se encostassem em alguém e vice-versa,
principalmente, o vice-versa. Um dia, encontrei-me na estação do Méier com o
Cosme, irmão gêmeo do Damião, e nos metemos juntos num daqueles vagões. Em
determinado ponto da viagem, um senhor reclamou que ele o assediava sexualmente
(na década de 70, não se dizia assédio sexual, e sim “você está encostando em
mim”.
-”Você precisa sentir o que está atrás
de mim”. - respondeu o meu amigo, encerrando o assunto.
Na volta da Central do Brasil para o
Méier, havia o problema do “mudou a seta”. Lá, toda a atenção era pouca para
saber em que plataforma sairia o trem para o nosso destino. A seta indicava que
o trem parador de Deodoro sairia de tal plataforma, mas gritavam, muitas vezes
“mudou a seta”, e uma pequena multidão se deslocava para outra plataforma.
A vantagem do trem era a rapidez, mas o
problema estava nos sábados, quando eu assistia a duas aulas no horário da
tarde. Nesse dia e nessa hora, eu conseguia sentir o banco sob o meu traseiro,
isso seria uma vantagem não fosse a espera. Se eu tivesse ido de ônibus,
estaria a essa altura em São Cristóvão – imaginei muitas vezes, enquanto sofria
no Méier com a demora junto com umas poucas pessoas. Num desses sábados, o trem
não veio e satisfação alguma foi dada.
Depois de um ano, desisti desse meio de
transporte. Quase duas décadas depois, voltei a ele, mas só por uma vez. Foi no
governo do Itamar Franco, quando entramos em greve, e uma assembleia foi
marcada para a tarde de sexta-feira. Eu soube que um dos meus colegas voltaria
para casa de trem e me ofereci para acompanhá-lo.
-Vamos ver como estão os trens. -
disse-lhe.
Constatei que estavam a mesma coisa de
antes.
(*)
O fim dos bondes no Rio de Janeiro ocorreu em tempos variados. Na Zona Sul, em
63 e na Zona Norte, onde residia o redator do seu O BISCOITO MOLHADO, em 65. No
Alto da Boa Vista, só acabou em 67 e em Santa Teresa, como o bonde é do povo,
deverão circular em breve. Quem quiser saber mais sobre bondes deve entrar em:
http://www.bondesrio.com/paginas/basicas/frame_home_novo.html