------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4375 Data: 05 de março de 2014
-------------------------------------------------------------------
PERGUNTAS DOS
LEITORES
-Como Camões adquiriu cultura tão
sólida? Travassos.
BM: Existem muitas controvérsias sobre a infância e adolescência do poeta
e, consequentemente, sobre a sua formação intelectual.
Especula-se que, aos treze anos de
idade, foi educado pelo seu tio Bento, que o encaminhou para estudar na
Universidade de Coimbra. Todavia, o seu nome não consta nos alfarrábios do
tradicional educandário. Com o terrível terremoto de 1755 se perderam
documentos valiosíssimos?... Sim, caro Travassos, mas a catástrofe se deu em
Lisboa, não em Coimbra.
O que sabemos é que Camões adquiriu uma
excelente formação intelectual, interessando-se pela literatura clássica e
moderna, cosmografia e história.
Reza a tradição que ele foi um estudante
indisciplinado, o que deve ser verdade, haja vista o seu temperamento
irrequieto.
-Sendo a língua portuguesa, como
versejou outro poeta – Olavo Bilac - “esplendor e sepultura”, acredito que a
fama de Camões, com toda a centelha do gênio, não se espalhou por toda parte. Maria
João
BM: Engano seu; as obras camonianas não ficaram sepultadas na língua
portuguesa. Torquato Tasso, um dos luminares da poesia italiana, que possuía
espírito competitivo, declarou que Camões era o único poeta que temia e lhe
dedicou um poema. John Milton, proeminente nome da literatura inglesa,
reconheceu a influência de Camões no seu trabalho. Cervantes considerava Camões
o “cantor da civilização moderna”, e outro grande nome espanhol, Lope de Vega,
também o enalteceu com entusiasmo. Em terras alemãs, Goethe reconheceu a sua
genialidade; Friedrich Schlegel considerou-o o expoente máximo da poesia épica;
Humboldt se encantou com seus versos sobre a natureza; e August-Wilhelm
Schlegel escreveu que Camões vale por uma literatura inteira.
Resumindo: o poeta foi bem modesto
quando escreveu aqueles dois versos sobre a divulgação dos feitos portugueses:
“Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar engenho e arte.”
-Na visita de Camões ao redator do
Biscoito Molhado, este se ateve por mais tempo, a “Os Lusíadas”, mas o gênio lisboeta
tem outras obras de inspiração equivalente. Ferreirinha.
BM: Falamos das demais criações, porém não desenvolvemos a matéria devido
à premência de tempo.
Camões enveredou por três gêneros
literários com igual competência: o lírico, o épico e o teatral.
Não só foi um mestre do soneto, como
demonstrou virtuosismo nas canções e elegias. Na arte da glosa, instilou
espontaneidade, ironia e humor, sendo insuperável nas redondilhas.
Para o teatro, contribuiu com três
peças: “El-Rei Seleuco”, “Auto de Filodemo”, e “Anfitriões”. Das três,
destaca-se “Auto de Filodemo”, representada em 1555, na Índia. Trata-se de uma
comédia novelesca, com influência de Gil Vicente, autor que, de fato, dominou
esse gênero no português quinhentista.
Quanto às edições das poesias de Camões,
excetuando-se seu poema épico, aconteceu com ele desde o século XVI o que
ocorre no presente com a internet, principalmente, ou seja, textos de autores
anônimos atribuídos a autores famosos.
Se hoje assistimos a autores conhecidos, alguns de pouco talento,
descabelando-se de indignação com essa prática, imagine-se como reagiria Camões
se vivo fosse.
Na edição das “Rimas”, de 1595, foram
inseridos vários poemas apócrifos, e tal patranha se estendeu até o século XIX.
Nas “Rimas” da primeira edição, havia 65 sonetos, na edição de 1862, já eram
352. No final do século mencionado, dois especialistas do estilo camoniano
realizaram a garimpagem do livro, e muitos sonetos foram descartados.
-Camões, que citou deuses gregos e
romanos, era realmente católico? Almeida
BM : Camões, que enaltecia Vênus, e se sentia atraído pelos “roxos lírios”
das ninfas, era profundamente católico. Não seguiu o catolicismo da Idade Média,
pois, como sabemos, o Renascimento se impunha e os censores eclesiásticos
consideravam natural a presença de deuses pagãos nas artes.
Camões não viu com bons olhos aqueles
que professavam outra religião; atacou os protestantes e, mormente, os
muçulmanos, representados como ardilosos, traidores e pérfidos.
Também criticou a Itália, sede do
papado, devido aos crimes e vícios que lá vicejavam.
-Como era Camões fisicamente? Gomes
BM: Segundo os seus contemporâneos, tinha o porte mediano, cabelo louro
arruivado, além de ser cego do olho direito.
Em Goa, entre 1573 e 1575, Camões foi
retratado, porém, o original se perdeu e foi encontrado num saco de seda verde
nos escombros de um incêndio do palácio dos Condes da Ericeira. O enredo
novelesco não para aí; coube a Luís José Pereira de Resende, sob encomenda do
Duque de Lafões, fazer uma cópia desse retrato.
Há também uma miniatura de Camões,
pintada em 1581, na Índia, quando o poeta contava um ano de morto, que chegou
aos nossos dias.
Fala-se também de um retrato, com data
de 1556, em que ele aparece na prisão.
Enfim, não se conhece Camões hoje apenas
pelo olho direito cego.
-Camões teve um amor definitivo? Pela
sua vida turbulenta, parece-me que não. Amália
BM: Muitas foram as musas que fizeram o poeta segurar na
pena. Como ele mesmo versejou: “Em várias flamas variamente ardia”.
Sabendo-se homem de muitos amores,
Camões não identificou nenhum deles. Mesmo a Dinamene do célebre soneto,
suposta donzela chinesa, seria um artifício poético.
Os biógrafos, enxeridos como deve ser,
nomearam algumas damas: Catarina, Dona Joana Meneses, a Condessa de Linhares,
etc.
Nos seus poemas amorosos, sobressai o
amor respeitoso, platônico, mas, em muitos deles, nas entrelinhas, pulsa o
desejo.
Do livro “Eros e Tanatos“ vale
reproduzir este parágrafo:
“Da poesia trovadoresca, herdou a
tradição do amor cortês, que é ele mesmo uma derivação platônica que coloca a
dama num patamar ideal, jamais atingível e exige do cavaleiro uma ética
imaculada e uma total subserviência em relação à amada. Nesse contexto, o amor
camoniano, como expresso nas suas obras, é, por regra, um amor idealizado que
não se realiza e se expressa no plano da abstração da arte. Contudo, é um amor
preso no dualismo, é um amor que, se por um lado ilumina a mente, gera a poesia
e enobrece o espírito, se aproxima do belo, do eterno, do puro e do
maravilhoso, é também um amor que tortura
e escraviza pela impossibilidade de ignorar o desejo de posse da amada e as urgências da carne.
Queixou-se o poeta inúmeras vezes, amargamente, da tirania desses amores
impossíveis, chorou as distâncias, as despedidas, a saudade, a falta de
reciprocidade, e a impalpabilidade dos nobres frutos que produz.”
É isso aí.
Nenhum comentário:
Postar um comentário