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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4374 Data: 03 de março de 2014
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126ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-Como dissemos, anteriormente, você
sentiu no corpo e na alma o mesmo que os grandes navegantes lusitanos antes de
dar início à sua obra-prima.
-De certa maneira, sim. Viajei na nau
São Bento, de Fernão Álvares Cabral, que partiu do Tejo em 24 de março de 1553.
-Você tinha 29 anos de idade. -
calculei.
-A nau singrou mares dantes navegados
por Vasco da Gama.
-No Cabo da Boa Esperança, deu-se uma
grande tempestade em que se perderam três outras naus da esquadra?
-Sim, vi Adamastor com os meus próprios
olhos.
-E como o herói de “Os Lusíadas”
desembarcou na Índia?
-Ele, em Calecute, eu, em Goa.
Alistei-me, logo que lá cheguei, em 1554, nas forças do vice-rei Dom Afonso de
Noronha e combati na expedição contra o rei da Pimenta.
-No ano seguinte, 1555, houve mudança no
comando, e, você, como outros soldados, foi combater os mouros no Mar Vermelho?
-Sim, mas não topamos com os inimigos;
recolhemo-nos, então, em Ormuz, no Golfo Pérsico.
-Aproveitou os momentos de paz e redigiu
os primeiros versos de “Os Lusíadas”?
Não me respondeu, e eu prossegui:
-De volta a Goa, em 1556, o governo
havia de novo mudado?
-Sim, Dom Francisco Barreto assumiu o
governo de lá.
-Camões, uns biógrafos seus escreveram
que o novo governante lhe era favorável; outros, no entanto, afirmam que uma
sátira apócrifa, expondo a corrupção e a imoralidade reinantes, era da sua lavra.
-Se eram maus versos, certamente não sou
o autor. - limitou-se a responder enigmaticamente, pois tal sátira se perdeu na
Índia.
-Você ficou preso por uns cinco anos por
causa disso ou por que contraiu dívidas sem saldá-las? Qual foi, de fato, a
razão do seu encarceramento?
-Importa que fui preso e, na
tranquilidade da prisão, não vi o tempo passar; estudei e escrevi mais.
-Com a assunção de Dom Francisco
Coutinho, você foi libertado e protegido. Ele o nomeou para a função de
Provedor-mor dos Defuntos e Ausentes em Macau.
E complementei:
-Era um cargo um tanto macabro pelo
nome.
-Macau, na época, era um entreposto
comercial ainda incipiente, com poucos lugares habitados.
-Um cargo a ser exercido sob as ordens
do governante de Goa não foi um estorvo para o seu ofício de poeta?
-Nada disso; grande parte de “Os
Lusíadas” eu escrevi lá, numa gruta.
-Gruta essa que recebeu o seu nome. -
informei-lhe.
Sorriu, e fiz-lhe outra pergunta:
-De retorno a Goa, sofreu o naufrágio
junto à foz do rio Mekong, em que só se salvaram você e o manuscrito do seu
poema épico.
-Se eu perdesse o manuscrito,
perder-me-ia também.
-Diogo da Costa, seu amigo, diz que,
nesse naufrágio, morreu Dinamene, uma donzela chinesa pela qual você se
apaixonara. Outros afirmam que a história não foi essa. Qual é a verdade?
-Importa à arte apenas o soneto que ela
me inspirou:
E recitou os dois últimos versos:
“Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.”
-Você não se fixou em elaborar “Os
Lusíadas”, somente, outros poemas lhe jorraram da fonte inspiradora.
-Em seguida ao naufrágio, versejei sobre
o hebreu aprisionado na Babilônia que sofre saudades de Sião.
-Poema esse considerado o esteio da
lírica camoniana. - pontuei.
E ele recitou as primeiras redondilhas:
“Sobolos rios que vão
por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.”...
-De Goa, você foi para Sofala, ilha de
Moçambique.
-Era uma maneira de encurtar a distância
entre mim e Portugal.
-Foi na nau de Pedro Barreto que,
designado governador de lá, o iludiu com mil promessas.
-De Moçambique, eu queria partir para
Lisboa, pois as saudades de Portugal me atormentavam muito.
-Porém, o novo governador era de caráter
insidioso e o deixou a penar na ilha distante.
Camões nada disse, e eu continuei:
-Seu amigo, Diogo do Couto, já
mencionado, fez a seguinte descrição:
-”Em Moçambique, achamos aquele Príncipe
dos Poetas de seu tempo, meu matalote e amigo Luís de Camões, tão pobre que
comia de amigos, e, para se embarcar para o reino, lhe ajuntamos toda a roupa
que houve mister, e não lhe faltou quem lhe desse de comer. E aquele inverno
que estava em Moçambique, acabando de aperfeiçoar as suas Lusíadas para as
imprimir, foi escrevendo muito em um livro, que intitulava Parnaso de
Luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia o qual lhe
furtaram. E nunca pude saber, no reino, dele, por muito que inquiri. E foi
furto notável.”
-Diogo do Couto foi meu grande amigo. -
reconheceu.
-Mas no instante de embarcar com ele de
volta a Portugal, o pérfido governador Pedro Barreto, sob a alegação que havia
uma dívida sua de 200 cruzados, por gastos que fizera, embargou a viagem.
-Meus amigos, com Diogo do Couto à
frente, levantaram esse valor e, finalmente, pude voltar.
-A bordo da nau Santa Clara, você chegou
a Cascais em 7 de abril de 1570.
-Quanto tempo transcorreu!... Eu estava
com 46 anos de idade.
-E, na sua terra, finalizou o grande
poema épico de Portugal.
-Apresentei-o numa récita ao rei Dom
Sebastião, um adolescente ainda. Ele determinou que “Os Lusíadas” fossem
publicados em 1572, concedendo-me uma pensão em pagamento pelos serviços
prestados na Índia.
-E o poema foi dedicado a ele.
-Usei, como já disse, a técnica de
Virgílio; introdução, invocação, dedicatória, no caso ao rei Dom Sebastião,
e ação, fundindo fatos históricos com a
mitologia greco-romana.
-Vênus protege a frota portuguesa da
intervenção de Baco, que reuniu os deuses marítimos para destroçá-la.
Animou-se e resumiu mais um trecho
mitológico da sua obra:
-Vênus cria uma ilha para os navegantes
vitoriosos e os recompensa com os favores de belas ninfas.
E, em seguida, recitou um trecho da Ilha
dos Amores:
-”C' um delgado sendal as partes cobre,
De
quem vergonha é natural reparo,
Porém, nem tudo esconde, nem descobre,
O véu dos roxos lírios pouco avaro.
Mas para que o desejo acenda o dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu por toda parte,
Ciúmes em Vulcano, amores em Marte.”
-Muito sugestivo o roxo lírio das
ninfas, - comentei com o olhar malicioso.
Ele sorriu.
-Camões, a pensão que lhe foi concedida
pelo rei Dom Sebastião não foi grande coisa.
-Dava para viver, o problema era o
pagamento irregular, o que me trouxe de volta as dificuldades materiais.
-Seus últimos anos foram vividos num
quarto de uma casa perto da Igreja de Santa Ana em lamentável pobreza.
-Para exacerbar o meu sofrimento,
Portugal de tantas glórias entrava em decadência com a morte de Dom Sebastião
nas Cruzadas. Em 1580, quando morri, meu país era absorvido pela Espanha.
-Portugal dos memoráveis feitos morria,
e você junto com ele.
Creio que o portentoso poeta não ouviu
essas palavras, pois quando olhei, não o
vi mais; partira mais uma vez.
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