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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4373 Data: 02 de março de 2014
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126ª VISITA À MINHA CASA
-Camões, você estudou mesmo na
Universidade de Coimbra? - foi a primeira pergunta que fiz ao grande poeta logo
que ele se materializou à minha frente.
-Fatos da minha vida que se encontram
envoltos em mistério, nele permanecerão para não perder a magia.
-Os pesquisadores o desagradam na sua
busca obstinada pelos fatos passados?
-Às vezes.
-Você promete, Camões, não falar o
português quinhentista?
-Prometo, mas se lessem mais “Os
Lusíadas” e outras obras minhas, não haveria estranhamento algum.
-Você conheceu profundamente o latim, o
espanhol e, evidentemente, a língua portuguesa.
-Conheci.
-Aliás, você consolidou o português
culto.
-Houve outros autores portugueses que
também contribuíram para isso. - ponderou.
-Camões, você viveu em pleno
Renascimento, um período de acentuadas mudanças culturais e da sociedade, que
marcaram o fim da Idade Média.
-Sim, houve com o Renascimento a
redescoberta e revalorização da Antiguidade Clássica. Valorizou-se o homem,
colocando-o no centro do universo.
-Vasco da Gama. - veio-me logo à mente o
herói da sua obra-prima.
-Vasco da Gama tinha de ser exaltado. -
limitou-se a dizer.
-No Renascimento, a especulação
científica floresceu com vigor. Os diversos ramos do saber – Física,
Matemática, Astronomia, Engenharia e outros – tiveram um acentuado avanço. -
comentei.
-Sim. - disse-me.
-As grandes navegações, que se beneficiaram
desse progresso também, contribuíram sobremaneira para o conhecimento do
planeta em que vivemos. - aduzi.
-Vivia-se na Terra sem conhecê-la na sua
inteireza. - complementou.
-Então,
no início do século XVI, Garcia de Resende, que foi poeta, músico, cronista,
desenhista e arquiteto, além de Moço da Câmara de Dom João II, em 1490,
lamentou que não houvesse alguém capaz de celebrar as façanhas portuguesas.
Para ele e para muitos, havia material épico superior a dos romanos e a dos
troianos. - lembrei.
-Garcia de Resende fatiou seu talento em
tantas partes que não enfrentou o desafio de escrever um poema épico. Eu o
compreendo; não bastava empunhar a pena. - comentou.
-João de Barros fez a tentativa, mas com
uma novela de cavalaria em formato épico. Antonio Ferreira, apesar de ter
recebido o cognome “o Horácio Português”, não conseguiu criar o grande poema
épico por que Garcia de Resende tanto clamava.
-Antonio Ferreira encontrava mais
facilidade em criar odes, epístolas, elegias e peças de teatro. - justificou.
-Virgílio tinha de ressuscitar para
enaltecer um povo que havia guerreado encarniçadamente com os mouros e, em
seguida, com Castela, para conquistar a sua soberania?... E esse mesmo povo,
escarmentado pelas lutas forjou um espírito aventureiro que o levou a navegar
pelos sete mares, expandindo as fronteiras do mundo e desbravando novas rotas
de comércio e exploração. Fazendo, nessa faina, frente a exércitos inimigos a
às forças sobre-humanas da natureza.
Quando parei para tomar fôlego, Camões
retomou a palavra.
-Como era um trabalho de Virgílio, e ele
já morrera há mil e quinhentos anos. Eu li, reli as suas obras, mormente
“Eneida”, e utilizei a técnica concebida por ele para o meu poema épico.
-Virgílio conduziu Dante Alighieri até a
porta do Paraíso.
-Deixou-o com Beatriz e veio me ajudar.
- brincou Camões.
-De tal grandeza foram os feitos
portugueses, que ser conhecedor profundo da obra de Virgílio e possuir sólida
erudição também em mitologia greco-romana não bastariam para criar um poema à
altura. Sem falar na centelha de gênio, que se fazia necessária.
-De fato, se eu fosse apenas um poeta da
corte não teria alcançado o meu objetivo com a mesma amplitude.
-Você, Camões, sentiu na carne a na alma
o mesmo que os grandes navegantes lusos?
-De certa maneira, sim. Fui soldado que
viu a morte com a espada na mão. Fiz-me
ao mar, conheci muitos países e até de naufrágios escapei. Longe da pátria,
sofri de saudades como os heróis navegadores de outrora.
-As experiências que você acumulou, por
tantos anos, como homem de ação, açularam o seu talento de poeta?
-Eu complementaria afirmando que, sem
essas experiências, eu não seria capaz, unicamente, de dar à luz a “Os
Lusíadas”.
-A corte de Dom João III, que você
frequentou, era demasiadamente tranquila para o seu temperamento, e, então,
você procurou a boemia e a turbulência das ruas.
-Principiou-se a minha carreira de
poeta, de fato, na corte de Dom João III. Havia lá damas da nobreza
inacessíveis que me inspiravam. A tranquilidade lá era só aparente. Sabemos nós
das artimanhas dos cortesãos, dos entrechoques de grupos rivais. Um ambiente de
falsidades, entremeado de palavras venenosas, incomoda. Procurei a sinceridade, muitas vezes bruta,
dos plebeus. Uma boa parte da minha vida foi turbulenta.
-Seus biógrafos, alguns deles, pelo
menos, afirmam que, por causa de um amor contrariado, você se alistou como
militar e partiu para a África.
-Para reagir contra os amores
insatisfeitos, eu tinha a pena de poeta. Na verdade, eu precisava de respirar
novos ares. Portugal se tornara pequeno para mim, fisicamente falando, é
evidente. E parti.
-Na África, você perdeu um olho numa
batalha.
-Muitos só me conhecem hoje em dia, pelo
que vejo, pelo fato de eu ter sido um caolho;
-Você é nome de um prato no Brasil:
“Bife à Camões”.
-E nada entendo de culinária. Isso por
que escrevi “Os Lusíadas”?
-Não, porque perdeu um olho.
Depois de uma pausa constrangedora,
prossegui:
-Deixe-me explicar: nos restaurantes, ou
casas de repasto, do Brasil, servem um prato chamado “Bife à Cavalo”, que
contém dois ovos estrelados.
-Quando contém um, passa a chamar-se
“Bife à Camões”. - deduziu com uma gargalhada.
-Um homenagem dos artistas da culinária
ao grande poeta. - contemporizei.
-Se eu soubesse que a minha fama de
caolho correria o mundo, não teria feito versos apenas para Perdigão que perdeu
as asas. - afirmou com outra sonora gargalhada.
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