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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4889 Data: 21 de junho de 2014
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SABADOIDO DA COZINHA À COPA
-A Rua Chaves Pinheiro ainda parece que sofreu um bombardeamento. - disse o Luca quando o Claudio lhe franqueou o portão para mais um Sabadoido.
-Hiroshima foi restaurada em menos tempo. - exagerei.
Quando já estávamos acomodados nas nossas cadeiras, meu irmão lhe perguntou sobre as partidas de tênis de mesa de que tem participado.
-Muitas dores, Claudiomiro. A Glória reclama dos meus gemidos, mas eu não resisto quando vejo uma raquete.
-E o Gordo?
-Ele tem mais de 200 quilos e joga muito. Confessou-me que, no dia seguinte aos jogos, tem até dificuldade de calçar os sapatos tantos são os incômodos musculares.
-Os atletas só se tornam grandes quando aprendem a conviver com a dor. - afirmou o Cláudio com expressão jocosa.
-O Gordo cisma de me chamar de Seu Luís, mesmo eu lhe pedindo para me chamar de Luca. A garotada que aparece para jogar só me trata de senhor. - indignou-se.
-Um meu colega de trabalho me revelou que uma moça se ergueu do banco do metrô para lhe ceder o lugar. Ele ficou arrasado, quase necessitou de tratamento psicológico. - manifestei-me.
-Como eu só ando com o meu carro, não passo por esse problema. - disse-nos o Luca.
-Esse meu amigo dirigia olhares libidinosos para essa moça, mas ela os interpretou como súplica de um idoso louco para sentar-se. Essa é a minha interpretação.
-Talvez, Carlinhos, ela tivesse notado a sua intenção e, sutilmente, o chamou de velho, dando-lhe o lugar. - interpretou esse gesto, por sua vez, o Luca.
-Esse negócio de ceder o lugar em transporte público é mais sério do que parece. Porque a negra Rosa Parks se recusou a se levantar para um branco se sentar, num ônibus em Alabama, foi presa. Esse caso foi um dos estopins que deflagrou o Movimento dos Direitos Civis liderados por Martin Luther King.
Depois de o Luca concordar com a cabeça, acrescentei:
-Lembro até o número desse ônibus: 2857.
-Belo milhar, Carlinhos. - empolgou-se o Luca.
-Eu não cedia meu lugar para idosos porque, geralmente, eles se sentiam ofendidos. Agora, que passei dos 60, não me preocupo mais com isso. - disse meu irmão com a expressão de quem fez uma piada autodepreciativa.
-Sempre que me dirijo ao restaurante da Rua do Rosário, onde almoço, o meu ego fica inflado, mas só meu ego.
-Não entendi, Carlinhos. - disse-me o Luca.
-Para chegar lá mais rápido, corto caminho por uma galeria da Rua do Ouvidor. Mal entro nessa galeria, recebo, sempre, papeizinhos de propaganda de mulheres seminuas dignas de capa da Playboy.
-Propaganda de rendez-vous?
-De casa de saliência, Luca. - aditou meu irmão.
-Amasso esses papeizinhos e varejo na lixeira mais próxima por tratar-se de propaganda enganosa.
-Não olha antes nem o endereço, Carlinhos?
-Depois de eu menear negativamente a cabeça, os dois lembraram o Vagner, ainda ausente, que não dispensava nem carne de terceira.
E prossegui:
-Certo dia, um rapaz, ao me entregar esses papeizinhos, apontou o elevador comunicando-me que era no sétimo andar.
-Carlinhos, você deveria ter ido. - criticou-me o maroto do meu irmão.
Em seguida, soergueu-se da cadeira e comunicou ao Luca que era hora de trazer os copos de caipiroska.
Mas essa sessão do Sabadoido se iniciou, de fato, uma hora antes, na cozinha da casa.
-Daniel, como você se esqueceu de computar o resultado do jogo da Rússia contra a Coreia do Sul?... Um cara lá do meu trabalho, que não viu os três pontos computados no bolão, falou em recorrer ao STJD. Olha que ele é torcedor do Fluminense.
-Esqueci, Carlão; mas por que você mesmo não atualizou o resultado no bolão?
-Eu não tenho o Excel no meu computador de casa.
-O pessoal goza o Fluminense com o tapetão, mas, com isso, o escritório de advocacia do Mário Bittencourt deve estar concorridíssimo. - interveio a Gina.
-Se a Espanha tivesse o Mário Bittencourt, ganharia os pontos do Chile, porque um jogador estava com o número 20 na camisa e o número 19 no calção.
-Certamente. - concordaram todos comigo dentro do espírito de brincadeira.
-Na transmissão da TV Globo, apenas o Roger notou essa discrepância; nem o comentarista de arbitragem havia reparado.
Com a expressão defensiva, meu irmão se manifestou:
-Vocês podem não acreditar, mas antes do Roger eu tinha visto isso.
-Então, você viu. Eu quase sempre sei quando uma pessoa quer se sobressair com mentiras e finjo que acredito. - disse-lhe.
-Carlão, a Espanha não estaria arrumando as malas com o nosso advogado.
-E tem mais, Daniel, se o Vinícius de Moraes fosse espanhol, o hino da Espanha teria letra. - garanti.
-E a invasão da sala de imprensa do Maracanã pelos chilenos, Carlão?
-Foi a elite branca do Chile que invadiu. - não deixei a piada escapar.
-A maioria desses torcedores da América Latina veio assistir à Copa com pouco dinheiro. - disse meu irmão.
-Eu imagino a sujeirada que eles estão espalhando pelo caminho.
-Se todos fossem como os torcedores japoneses, Gina, mas não são. - disse-lhe.
-O Centro da cidade deve estar bem agitado, Carlão.
-Daniel, uma colega minha que pega táxi de lotada para a zona oeste, no Largo de São Francisco, me informou que, na partida Brasil e México, toda a fila foi assaltada às duas horas da tarde. Ela escapou porque os servidores públicos foram liberados ao meio-dia e meia.
-E você, Carlão?
-Saí às 11h da manhã, porque registrei minha entrada no ponto eletrônico às 6h 10min.
-Muito barulho por lá?
-Muitas cornetadas, mas suportáveis. O que tenho percebido, tanto lá como cá, são os poucos foguetórios. Graças a Deus, pois pior do que tudo são esses morteiros, cabeças de negro, malvinas...
E prossegui:
-A Copa do Mundo proporciona fatos inusitados. Um rapaz, de pouco mais de 30 anos, na porta do metrô, assoviava a “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso.
-Nem tudo está perdido, Carlinhos. - observou meu irmão.
-Nesse jogo contra o México, eu me surpreendi no caminho para a estação da Carioca do metrô porque a feira de livros deu lugar ao comércio de mil badulaques verde-amarelo.
-É a Copa do Mundo, Carlão.
-Já se vestiu para sair comigo, Daniel?- cobrou-lhe a mãe.
-E já arrumei o meu carro, que está padrão FIFA.
-Falando nisso, um ambulante, da Rua do Ouvidor, escreveu no tambor de bebidas dele: “suquinho padrão FIFA.
-Vamos, Daniel.
Mal os dois saíram da cozinha rumo ao portão da rua, Luca ligou do celular avisando que chegava para mais uma sessão do Sabadoido.
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