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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4885 Data: 11 de junho de 2014
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182ª CONVERSA COM OS TAXISTAS
-Você sabe como é a vida de taxista; se não trabalhar, não ganha. - queixou-se, amuado.
-A Constituição Soviética afirmava o princípio de quem não trabalha não come.
-Mas isso só funciona com os taxistas, seja nos países comunistas ou capitalistas. - reagiu à minha alusão à Constituição Stalinista de 1936.
O motivo do acabrunhamento do 161, o Botafoguense, que, normalmente, é entusiasmado, eram os dias de jogos da Copa do Mundo no Brasil.
-Na estreia do Brasil contra a Croácia, todos saem do trabalho ao meio-dia. E depois para nós?...
-Parece que algumas empresas privadas só liberarão seus funcionários às 3 horas da tarde. - animei-o.
-Eles compensam depois para saírem ao meio-dia. A diferença é que o funcionário público não compensa.
-Terei de compensar a minha saída ao meio-dia e meia, e sou funcionário público.
Notei a sua expressão cética, mas como se acumplicia comigo no amor ao mesmo clube e me considera um amigo, não me contrariou.
-Provavelmente, os nossos chefes abonarão as horas a serem compensadas nos jogos da Copa do Mundo. - acrescentei.
-Nós, taxistas, teremos apenas os dias da manhã para trabalhar, pois todos irão para casa cedo para assistir aos jogos. Se o Brasil vencer, enchem os bares para comemorar. Os que não estiverem comemorando, estarão protestando, impedindo todo o trânsito de fluir. Passageiros para a gente não vai haver.
-É verdade.
-A renda desses organizadores da Copa está garantida, mas a nossa não. E as contas a pagar batendo na minha porta.
-A renda deles está garantida muito além da que vem honestamente. Você não viu a filha do João Havelange escrever, ou compartilhar no computador, a frase: “o que tinha de ser roubado já foi”? - intervim com revolta para contrastar com a sua amargura mansa.
-Tirando o Castelão, em Fortaleza, e o Mineirão, em Minas, todas as obras dos estádios da Copa do Mundo foram superfaturadas.
-Esses dois foram os únicos a ficar prontos antes do prazo do cronograma; superfaturadas foram as contas de todos os estádios sem exceção. - corrigi.
-É para você ver.
-Você se alegrou quando o Lula conseguiu, em 2007, trazer a Copa do Mundo de 2014 para o Brasil? - provoquei.
-Eu não imaginava essa roubalheira toda, mas sabia o quanto isso prejudicaria o faturamento dos taxistas.
-É aqui que ficamos. - disse-lhe na Rua Modigliani, deixando-o, infelizmente, com a sua amargura.
-E como está a cidade nestes dias de Copa do Mundo? - perguntou-me o 115, que me trata por “Meu Nobre”, quando embarquei em seu táxi em Maria da Graça.
-Uma barulheira infernal. - respondi, sentindo, agora, um aborrecimento requentado.
-Mas aqui a vuvuzela da África do Sul não pegou. - ponderou.
-Ainda assim, os barulhentos brasileiros estão bem ativos.
E dei como exemplo o camelô que, na minha saída do trabalho para o almoço, soprou uma corneta verde e amarela que quase rompeu os meus tímpanos.
-Por aqui algumas pessoas já dão essas cornetadas.
-Multiplique isso por mil; são incontáveis os camelôs anunciando as suas mercadorias com sopros comparáveis aos do Lobo Mau quando pretende derrubar a casa dos Três Porquinhos.
-Sei. - limitou-se a um monossílabo.
-No metrô, três dias antes do jogo do Brasil, às 5h 4min da manhã...
-O que tem? - não conteve a curiosidade.
-Quando o trem partiu da estação de triagem, entrou a todo volume, nos altos falantes, a voz do Luís Penido.
-Aquele locutor esportivo da Rádio Globo? Sei.
-”Lá vem ele. O maior do mundo. O mais querido da galera. O queridaço. O Maracanã. Chegou!” - intentei reproduzir aquelas palavras ditas como se fosse uma partida de futebol.
O “chegou” foi gritado por ele como se fosse um gol. - acrescentei.
-Na hora em que muitos passageiros do metrô ainda estão com as camas nas costas... - disse com um sorriso sádico.
-E não é só. Na estação seguinte, São Cristóvão, entra outra gravação dele que, no mesmo diapasão, grita para saltarem na “lateral direita, a do Cafu”.
-E isso todo dia?
-Todo dia. - respondi com desalento.
-O jeito é suportar a barulheira. - foram suas palavras, mais sádicas do que de consolo.
-Como dizia o filósofo Schopenhauer, “A soma de barulho que uma pessoa pode suportar está na razão inversa de sua capacidade mental.” - declarei, ao saltar do seu táxi sem me importar em parecer pernóstico como um nobre.
-Modigliani?
É a pergunta recorrente do Bob Esponja quando ainda me acerto com o cinto de segurança do banco do seu táxi, o de número 134.
-Isso.
-Andou fazendo frio, fiz força para fugir dele, mas, de uns dias para cá esquentou um pouquinho.
-Fez força?...
-Ginástica. - esclareceu.
-Num desses dias de friagem, levantei, com dificuldade da cama, antes das 5 horas da manhã. Mal entrei na água quente do chuveiro, pifou a resistência e a água esfriou, ou melhor, congelou. Caí numa cilada.
-O amigo desistiu do banho? - demonstrou curiosidade.
-Eu me encontrava no estágio em que os americanos chamam de “turning point”, ou seja, você tem de seguir em frente, pois a decisão já foi tomada.
-O amigo já esteve em Cordeiro?
-Não. - respondi.
-Lá, eu senti frio de verdade. Para você encarar um banho frio, você tem, primeiramente, de molhar os braços, depois, os tornozelos e as pernas. O passo seguinte é entrar de cabeça. Com a cabeça bem molhada, o corpo todo aceita bem a água gelada. Há toda uma estratégia.
-Após um bom banho frio, a gente aguenta muito bem as temperaturas baixas. Nesse dia da pane do chuveiro elétrico, fui trabalhar sem agasalho.
-Caso acontecesse isso comigo, eu sairia do box do banheiro imediatamente. Eu me secaria, colocaria, em seguida, um perfume para os passageiros não sentirem o cheirinho do taxista...
-Mas você não tomava banho frio em Cordeiro?- estranhei suas palavras.
-Tomava, mas, quando ficamos velhos, queremos conforto.
-Nos grandes centros de futebol da Europa, os jogadores têm de se enfiar numa banheira de gelo. Isso para não sentirem dores musculares.
-O gelo neutraliza o efeito do ácido lático. - surpreendeu-me o Bob Esponja com essa observação.
-Não sei se os jogadores da Croácia se deitam em banheira com pedras de gelo. - reportei-me ao primeiro adversário do Brasil na Copa do Mundo.
-Aquela seleção cuja camisa mais parece toalha de mesa de pizzaria?
-Sim – disse-lhe, sorrindo – aquela seleção com camisas que parecem toalhas xadrez.
-Se lá for, também, o país em que tudo acaba em pizza, eles estão no clima. - concluiu.
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