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domingo, 3 de junho de 2012

2159 - pão com banana


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3859                                    Data: 27 de maio de 2012
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A HORA DA MERENDA

O meu curso primário, que ia da 1ª série ao 5º ano, ou admissão, ocorreu exatamente nos últimos anos do Rio de Janeiro como Capital Federal, ou seja, no governo Juscelino Kubitscheck, o presidente que tornou realidade em absurdos três anos uma ideia de José Bonifácio e foi chamado de “canalha dionisíaco” por Nélson Rodrigues.
Recordo-me perfeitamente que, com seis anos de idade, trepado no muro da minha casa na rua Cachambi 533 aptº 103, ouvi o Expedito da Rua Chaves Pinheiro dizer sobre as eleições que se aproximavam.
-Vai ganhar  Juarez Távora.
-Juscelino Kubitschck retruquei.-  ecoando o que ouvia dos meus pais, seguidores do PTB e seus aliados.
No ano seguinte, eu entrei para a escola.
Logo aprendi que não era apenas a professora que mexia com a atenção dos alunos e que as aulas não se restringiam apenas ao alimento do espírito. Depois de uma hora, uma hora e meia de aula, uma  moça abria a porta da sala com lápis e caderno na mão e, pacientemente, o que não ocorria com muitos garotos, aguardava a permissão da professora para intervir. A professora, escrevendo com giz na lousa, ou palestrando da sua mesa, geralmente parava o que fazia.
-Pode falar.
E vinha a pergunta tão esperada?
-A merenda de hoje é mingau de feijão. Quantos vão merendar?
Várias mãozinhas se erguiam e ela se punha a contar.
-Dezoito.
Anotava o número no caderno e rumava para outra sala para a mesma rotina.
Na hora do recreio, esses 18 da minha turma rumavam para o refeitório, juntando-se às outras turmas, enquanto eu ia comer o meu sanduíche de pão com banana, embrulhado em papel de padaria, a céu aberto. Sempre que pretendo escrever sobre a humilhação que sofria, engolindo o meu pão com banana, diante de alunos que saboreavam pão com ovo,  desisto porque me vem à mente o texto do Nélson Rodrigues em que ele relembra o tempo de garoto cabeçudo como um anão de Velasquez que, na escola primária, chupava a banana entre duas fatias de pães, enquanto morria de inveja observando as gemas dos ovos descendo da boca dos seus colegas como uma baba elástica e bovina. Era dura a vida de filho de jornalista tanto na década de 10 quanto na década de 50, no século XX.
O que me deixava uma má impressão da merenda que, até então, eu não provara era a caneca de leite que tínhamos de tomar compulsoriamente antes do início das aulas que iam de segunda a sábado, com folga na quinta-feira. O ritual se iniciava no pátio da Escola 9-10 Manoel Bombim. As turmas do horário vespertino, o meu, da 1ª à 5ª série, ficavam perfiladas. Em seguida, entoávamos o hino “Nós somos da Pátria Amada”; a exceção era sexta-feira, quando cantávamos o “Hino Nacional”. Soltávamos a voz, enquanto uma descomunal caldeira repleta de leite com canecas de metal sobre uma mesa esperava por nós.
Encerrado o canto, cada professora conduzia disciplinarmente a sua turma para as salas, mas no caminho a porta de entrada afunilava tudo e lá estava à nossa espera uma caneca de leite.  Que bebida era aquela, meu Deus! Eu não sentia doçura alguma e, por isso, tapava o nariz para engoli-la.
Um dia, enjoado do meu pão com banana, levantei o braço quando a moça interrompeu a aula para anunciar que a merenda do dia era sopa de feijão. Os almoços e jantares lá de casa eram sempre acompanhados de feijão com arroz, que eu transformava num grude, adicionando muita farinha de mandioca, por isso, eu me julgava capacitado a provar tal merenda. Qual! Não cataram o feijão, grande parte do refugo da saca da leguminosa foi para a panela. Espreitei o momento em que as merendeiras não me observavam e escapuli do refeitório. Em casa, eu me queixei:
-Merenda horrorosa.
-Na guerra, come-se até rato. - retrucou a minha mãe.
-Mas nós não estamos na guerra.
Pronto: o assunto guerra sempre derivava, por parte da minha mãe, e, obsessivamente, por parte da minha avó, nos feitos do meu bisavô na guerra do Paraguai, embora ele não tivesse sido obrigado a recorrer a tal iguaria. Isso aconteceu com os parisienses cercados pelos prussianos, em 1871, e com os russos de Leningrado na Segunda Guerra Mundial.
Voltei ao pão com banana depois daquela primeira experiência desastrosa.
Carlos, um lourinho brigão de nariz escorrendo, que gostava de mim porque eu atendia ao sem pedido de ficar à sua frente na fila da turma, embora ele fosse o mais baixote, informou-me que a macarronada era a melhor das merendas.
-Teve um dia, que eu repeti o prato cinco vezes. Não repeti mais, porque me expulsaram do refeitório.
Quando a moça anunciou macarronada, lá fui eu para o refeitório. Comi com apetite, mas sem repetir o prato. A macarronada constava agora no meu cardápio.
Carlos me sugeriu, tempos depois, mingau de sagu. Dei uma colherada, tentei a segunda. Desisti. Desaprovei também o mingau de tapioca e o mingau de fubá. Em casa, comentei sobre esses dois pratos.
-Você não gostou porque não souberam fazer.- declarou meu pai.
-Eu não me lembro de ter comido aqui um mingau de fubá ou de tapioca que fosse deslumbrante. Não me lembro, aliás, desses mingaus aqui em casa.- falei com o meu topete de garoto.
-Desde solteira que não gosto de ficar na cozinha.- exaltou-se a minha mãe.
-Se você servir o Exército vai ter de comer a gororoba que eles lhe derem.- advertiu-me o meu pai.
O mingau de maisena foi aprovado, se as merendeiras deixassem o cilindro de canela em pó em nossas mãos, seria melhor ainda, mas elas não correram esse risco, pois muitos polvilhariam em demasia o mingau e depois sumiriam com ele.
Na proximidade do fim do ano letivo, aconteceu um milagre: a moça interrompeu a nossa aula e anunciou:
-Merenda de hoje: queijo com goiabada.
Um urro de alegria tomou conta da nossa turma, até os que merendavam pão com ovo participaram da alegria.
-Assim, até eu vou merendar.- disse a professora.
-Não pode.- gritaram os alunos mais rebeldes.
-Pode sim.- defenderam-na os alunos mais quietinhos.
-Todo o mundo?- disse a garota antes de anotar 40 no seu caderno.
Passaram os anos, vieram o Francisco Negrão de Lima e o Sá Freire Alvim como prefeitos do Distrito Federal, e na Escola 9-10 Manoel Bomfim, eu só merendava mesmo, no refeitório,  nos dias de macarronada e  mingau de maisena,  porque o “romeu e julieta” jamais se repetiu.





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