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O BISCOITO
MOLHADO
Edição 3859 Data: 27 de
maio de 2012
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A HORA DA MERENDA
O meu curso primário, que ia
da 1ª série ao 5º ano, ou admissão, ocorreu exatamente nos últimos anos do Rio
de Janeiro como Capital Federal, ou seja, no governo Juscelino Kubitscheck, o
presidente que tornou realidade em absurdos três anos uma ideia de José
Bonifácio e foi chamado de “canalha dionisíaco” por Nélson Rodrigues.
Recordo-me perfeitamente que,
com seis anos de idade, trepado no muro da minha casa na rua Cachambi 533 aptº
103, ouvi o Expedito da Rua Chaves Pinheiro dizer sobre as eleições que se
aproximavam.
-Vai ganhar Juarez Távora.
-Juscelino Kubitschck
retruquei.- ecoando o que ouvia dos meus
pais, seguidores do PTB e seus aliados.
No ano seguinte, eu entrei
para a escola.
Logo aprendi que não era
apenas a professora que mexia com a atenção dos alunos e que as aulas não se
restringiam apenas ao alimento do espírito. Depois de uma hora, uma hora e meia
de aula, uma moça abria a porta da sala
com lápis e caderno na mão e, pacientemente, o que não ocorria com muitos
garotos, aguardava a permissão da professora para intervir. A professora,
escrevendo com giz na lousa, ou palestrando da sua mesa, geralmente parava o
que fazia.
-Pode falar.
E vinha a pergunta tão
esperada?
-A merenda de hoje é mingau
de feijão. Quantos vão merendar?
Várias mãozinhas se erguiam e
ela se punha a contar.
-Dezoito.
Anotava o número no caderno e
rumava para outra sala para a mesma rotina.
Na hora do recreio, esses 18
da minha turma rumavam para o refeitório, juntando-se às outras turmas,
enquanto eu ia comer o meu sanduíche de pão com banana, embrulhado em papel de
padaria, a céu aberto. Sempre que
pretendo escrever sobre a humilhação que sofria, engolindo o meu pão com
banana, diante de alunos que saboreavam pão com ovo, desisto porque me vem à mente o texto do
Nélson Rodrigues em que ele relembra o tempo de garoto cabeçudo como um anão de
Velasquez que, na escola primária, chupava a banana entre duas fatias de pães,
enquanto morria de inveja observando as gemas dos ovos descendo da boca dos
seus colegas como uma baba elástica e bovina. Era dura a vida de filho de
jornalista tanto na década de 10 quanto na década de 50, no século XX.
O que me deixava uma má
impressão da merenda que, até então, eu não provara era a caneca de leite que
tínhamos de tomar compulsoriamente antes do início das aulas que iam de segunda
a sábado, com folga na quinta-feira. O ritual se iniciava no pátio da Escola
9-10 Manoel Bombim. As turmas do horário vespertino, o meu, da 1ª à 5ª série,
ficavam perfiladas. Em seguida, entoávamos o hino “Nós somos da Pátria Amada”;
a exceção era sexta-feira, quando cantávamos o “Hino Nacional”. Soltávamos a
voz, enquanto uma descomunal caldeira repleta de leite com canecas de metal
sobre uma mesa esperava por nós.
Encerrado o canto, cada
professora conduzia disciplinarmente a sua turma para as salas, mas no caminho
a porta de entrada afunilava tudo e lá estava à nossa espera uma caneca de
leite. Que bebida era aquela, meu Deus!
Eu não sentia doçura alguma e, por isso, tapava o nariz para engoli-la.
Um dia, enjoado do meu pão
com banana, levantei o braço quando a moça interrompeu a aula para anunciar que
a merenda do dia era sopa de feijão. Os almoços e jantares lá de casa eram
sempre acompanhados de feijão com arroz, que eu transformava num grude,
adicionando muita farinha de mandioca, por isso, eu me julgava capacitado a
provar tal merenda. Qual! Não cataram o feijão, grande parte do refugo da saca
da leguminosa foi para a panela. Espreitei o momento em que as merendeiras não
me observavam e escapuli do refeitório. Em casa, eu me queixei:
-Merenda horrorosa.
-Na guerra, come-se até rato.
- retrucou a minha mãe.
-Mas nós não estamos na
guerra.
Pronto: o assunto guerra
sempre derivava, por parte da minha mãe, e, obsessivamente, por parte da minha
avó, nos feitos do meu bisavô na guerra do Paraguai, embora ele não tivesse
sido obrigado a recorrer a tal iguaria. Isso aconteceu com os parisienses
cercados pelos prussianos, em 1871, e com os russos de Leningrado na Segunda Guerra
Mundial.
Voltei ao pão com banana
depois daquela primeira experiência desastrosa.
Carlos, um lourinho brigão de
nariz escorrendo, que gostava de mim porque eu atendia ao sem pedido de ficar à
sua frente na fila da turma, embora ele fosse o mais baixote, informou-me que a
macarronada era a melhor das merendas.
-Teve um dia, que eu repeti o
prato cinco vezes. Não repeti mais, porque me expulsaram do refeitório.
Quando a moça anunciou
macarronada, lá fui eu para o refeitório. Comi com apetite, mas sem repetir o
prato. A macarronada constava agora no meu cardápio.
Carlos me sugeriu, tempos
depois, mingau de sagu. Dei uma colherada, tentei a segunda. Desisti.
Desaprovei também o mingau de tapioca e o mingau de fubá. Em casa, comentei
sobre esses dois pratos.
-Você não gostou porque não
souberam fazer.- declarou meu pai.
-Eu não me lembro de ter
comido aqui um mingau de fubá ou de tapioca que fosse deslumbrante. Não me
lembro, aliás, desses mingaus aqui em casa.- falei com o meu topete de garoto.
-Desde solteira que não
gosto de ficar na cozinha.- exaltou-se a minha mãe.
-Se você servir o Exército
vai ter de comer a gororoba que eles lhe derem.- advertiu-me o meu pai.
O mingau de maisena foi
aprovado, se as merendeiras deixassem o cilindro de canela em pó em nossas
mãos, seria melhor ainda, mas elas não correram esse risco, pois muitos polvilhariam em demasia o mingau e depois sumiriam com ele.
Na proximidade do fim do ano
letivo, aconteceu um milagre: a moça interrompeu a nossa aula e anunciou:
-Merenda de hoje: queijo com
goiabada.
Um urro de alegria tomou
conta da nossa turma, até os que merendavam pão com ovo participaram da
alegria.
-Assim, até eu vou merendar.-
disse a professora.
-Não pode.- gritaram os
alunos mais rebeldes.
-Pode sim.- defenderam-na os
alunos mais quietinhos.
-Todo o mundo?- disse a
garota antes de anotar 40 no seu caderno.
Passaram os anos, vieram o
Francisco Negrão de Lima e o Sá Freire Alvim como prefeitos do Distrito
Federal, e na Escola 9-10 Manoel Bomfim, eu só merendava mesmo, no
refeitório, nos dias de macarronada e mingau de maisena, porque o “romeu e julieta” jamais se repetiu.
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