----------------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 3966 Data: 08
de junho de 2012
--------------------------------------------------------------------------------
83ª VISITA À MINHA CASA
-Francisca Edwiges Neves Gonzaga!-
expressei o meu encantamento com a visita.
-Eu fui uma compositora ligada ao gosto
popular, não me trate, por isso, tão formalmente.
-Se eu não citar o seu nome todo, não
poderei dizer que a minha mãe também se chamava Edwiges, porém, com “h”.
-Com o meu nome, minha mãe homenageou
dois santos: São Francisco e Santa Edwiges.
-Os animais e os endividados?
-Os animais endividados. - brincou
Chiquinha Gonzaga.
-Você nasceu, em 1847, de uma mestiça pobre
e solteira. Sua mãe temeu que o seu pai, com o posto de primeiro-tenente do
Exército, parente do Duque de Caxias, não a reconhecesse como filha. Você
correu o risco de ser entregue à Roda dos Expostos.
Cabe aqui um parêntese no nosso diálogo:
-A Roda dos Expostos foi introduzida no
período colonial brasileiro e extinta no século XIX. A Roda dos Expostos
preservava o anonimato daqueles que depositavam os bebês enjeitados. Houve
crescentes tensões entre o poder local sobre a obrigação pública de contribuir
financeiramente para a Santa Casa, e chegou ao fim.
-Mas como os bebês eram tratados,
Chiquinha Gonzaga?
-Quase fui para a Roda, como se dizia
popularmente, mas escapei. - reagiu com uma risada.
-Você sabia como era a Roda dos
Expostos?
-Uma criança era criada por uma ama de
leite até os três anos de idade. Essas amas recebiam um pagamento pelo serviço
prestado. Havia casos de fraude, mães que colocavam o filho na Roda para, em
seguida, se empregar como ama de leite e recolher um dinheirinho.
-E essas crianças?
-A instituição tentava empregar os
meninos como aprendizes, e as meninas como domésticas. - explicou.
-Quase um dos maiores talentos musicais
deste país se perdeu em serviços de criada. Ainda bem que o tenente-coronel
José Basileu Neves Gonzaga a reconheceu como filha e tomou a sua mãe como
esposa.
-Meu pai tinha princípios morais
rígidos, assumia os seus compromissos.
-Como parente do Duque de Caxias, seu
pai vivia financeiramente bem?
-Nada; o dinheiro não sobrava na nossa
família, o que não impediu que eu fosse criada como uma menina da burguesia e
educada nos padrões sociais da segunda metade do século XIX. Tive professores
particulares que me ensinaram a ler, a escrever, aprendi com eles cálculos,
catecismos, idiomas...
-E a música, Chiquinha Gonzaga?
-Um piano em casa era símbolo de alto
padrão social. Assim, houve uma grande importação de pianos da Europa pelo
Brasil, acompanhados de numerosas partituras.
-Principalmente partituras de polca.
-Eu ainda não nascera, quando a febre a
polca tomou o Brasil, e assim foi durante décadas. Foi uma das danças mais
populares do Rio e, em seguida, até os salões de elite a receberam.
-Tomando o jeito brasileiro, ela se
transformaria no choro; mas isso fica para depois. Com um piano em casa,
Chiquinha Gonzaga, seu talento musical deslanchou.
-Ainda não, pois ninguém é uma ilha. Eu
precisava conhecer ainda muitos músicos talentosos. Meu tio e padrinho, Antônio
Eliseu, era flautista amador e me ajudou muito nesse início.
-Voluntariosa como você era, como se ajustou
ao ambiente militar imposto pelo seu pai?
-As arestas foram muitas, minha mãe interveio
incontáveis vezes, muitos foram os castigos. Quando eu estava com dezesseis
anos de idade, meu pai me casou com Jacinto Ribeiro do Amaral, um jovem rico de
vinte e quatro anos de idade.
-Seu pai já implicava com a sua
dedicação à música.
-Ainda não, tanto que me deu, como dote
de casamento, um piano.
-E o seu marido implicou logo?
-A implicância não aflorou logo porque
nasceu João Gualberto, no ano seguinte às nossas núpcias e, logo depois, tive
Maria do Patrocínio. Apesar das crianças, minha fixação na música e meu caráter
insubmisso passaram a desagradar o meu marido.
-Havia brigas entre os dois?
-Muitas. Estourou a Guerra do Paraguai e
o meu consorte era co-proprietário de um navio, o São Paulo.
-Eu sei; o governo de Dom Pedro II
contratou essa embarcação para transportar tropas para o teatro da guerra
(escravos alforriados) e material bélico.
Jacinto Ribeiro do Amaral foi à guerra como comandante da Marinha Mercante.
-Levando-me como ele, pretendia me
afastar da música e me vigiar. Tive de levar João Gualberto, mas a Maria do
Patrocínio, recém-nascida, ficou com minha mãe.
-Um absurdo, pois o bebê precisava de
você.
-No navio, era impossível eu controlar
os nervos com o tratamento revoltante que davam aos negros que lutariam, “os
voluntários da pátria”...
-E a abstinência da música. - interferi.
-Consegui um violão a bordo. O violão
não tem os recursos do piano, mas me consolou.
-Mas era tido como o instrumento dos vagabundos.
- frisei.
-Furioso, Jacinto me colocou a opção: ou
ele ou a música.
-Reza a lenda, Chiquinha Gonzaga, que
você respondeu: “Pois, senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia”.
-Decidida a abandonar meu marido, peguei
João Gualberto e retornei ao Rio de Janeiro. Na casa dos meus pais, não recebi
o apoio que eu esperava. A minha resistência se quebrou porque descobri que
estava grávida pela terceira vez.
-Houve, então, uma chance de reatamento.
-Esperei que nascesse Hilário, mas a crise
conjugal não teve tréguas e resolvi, de vez, lagar o Jacinto. Maria do
Patrocínio ficou com a avó e o bebê com uma tia paterna.
-A posição do seu pai continuou
inabalável?
-Ele passou a ignorar a minha
existência.
-Depois do grito de independência, vem a
guerra. Nem imagino o que significava uma mulher separada na sociedade burguesa
do Brasil no século XIX. - falei.
-Eu me encontrava no momento crucial da
minha vida; ou seguia em frente com as minhas próprias pernas ou caía pelo
caminho.
-E com a responsabilidade de carregar
consigo o filho mais velho.
-Sempre carreguei João Gualberto comigo.
-O que fez para se sustentar?
-Dei aulas particulares de piano.
-Enquanto ensinava, travou conhecimento
com o flautista Joaquim Antônio Callado.
-Uma pessoa fundamental para a música
popular brasileira e para mim.
-Há quem diga que ele criou o choro como
gênero musical, conciliando a polca europeia com os ritmos africanos mais o
molejo brasileiro. Uma coisa é certa: ele criou o primeiro conjunto de choro.
-Callado me introduziu no ambiente
musical do Rio de Janeiro. Ouviu as minhas primeiras composições e apresentou
críticas que só me fizeram melhorar. Ele era um respeitado professor do
Imperial Conservatório de Música.
-Ele compôs, para você, “Flor Amorosa” e
você retribuiu com “Atraente”. - disse sem malícia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário