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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5260SX Data: 29 de janeiro de 2016
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ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA
Estávamos tranquilamente no BRT do Céu, Simonsen, Paulo
Fortes, Cole, Biscoito e eu, quando ingressamos na Avenida Suburbana, não
renomeada de Helder Câmara, visto que ele aqui é vivo e não deve ser
homenageado. Na altura de Maria da Graça, o coletivo deu uma meia parada com a
porta aberta e o Biscoito não se conteve:
- Gente, aqui é o meu lugar, venham comigo!
Indecisos frente àquela ordem inusitada, vinda de
personalidade que nem sempre sequer fala o que pensa, titubeamos o suficiente
para não descer e escutar um PIMBA! E vimos nosso colega ser arremessado 200
metros por um Fiat 147 azul.
- Foi um Deus nos acuda, na acepção da palavra, mas
antes que o próprio Deus acudisse, apareceu um guarda de trânsito que era
vermelho como um camarão e tinha um discreto rabo, também vermelho,
serpenteando entre as pernas.
Desconfiamos que pudesse ser o Diabo em pessoa, mas
Simonsen, ex-aluno do Santo Inácio, além de primeiro colocado, sentenciou:
aquilo não é um rabo, é só uma fantasia neste Carnaval em que moramos!
Simonsen enganou-se mais uma vez, diria o Delfim, que
ainda não chegou e, portanto, nada ouvimos. E era mesmo o Diabo, que levou a
todos, Fiat 147, motorista e atropelado – no caso, o nosso Biscoito.
Era agora o emprego literal de: “... e o Diabo que
os carregue”, que se aplica a qualquer acidente de trânsito que ocorra no Céu,
onde tudo tem que ser perfeito. Em três minutos, toda a cena se desfez.
E nós, no ônibus, ficamos alvoroçados, lógico, mas
um querubim chegou voando, com uma mão a pedir tranquilidade e disse: “É assim,
aqui no Céu. Quem trata das ocorrências, julgamentos e punições é o Lá de
Baixo, pois é Lá Embaixo que ficam esses departamentos, digamos, policialescos,
com todas essas classes profissionais que não existem no Cá em Cima.”
-Sim, disse Simonsen, disciplinado, mas como
poderemos saber o que acontecerá ao nosso amigo?
- Queremos saber, queremos depor... já fui
testemunha de inúmeros casos terrenos de aposentadorias e sei como manusear os
argumentos favoráveis – trombeteou, com pausas precisas, a voz poderosa de
Paulo Fortes.
-E se ele demorar? Poderá ficar por lá forever and
a day, emendou sem traduzir, Cole Porter, capturando da minha canção Love is Here
to Stay, a melhor frase...
Ante tal turbilhão de vontades, calei-me, afinal
tudo já tinha sido dito.
- Nada posso garantir, mantenham a calma... – e
o querubim sumiu, num cintilante fremir de suas quatro asas. Desmaterializou-se
simplesmente.
Os dias se passaram no Céu sem passeios de BRT, as
noites sem cantorias, sem serenatas, aquela turma outrora animada agora
esmaecia minuto a minuto, quem os conhecesse diagnosticaria uma zica de
tristeza coletiva, sem direito a SUS.
Uma tarde, o Sol se preparava para colorir três
nuvens solitárias e apareceu um serafim em altíssima velocidade. Mal pousou,
recolheu suas seis asas e ainda ofegante, balbuciou:
- Puf-puf, o Biscoito, amigo de vocês vai, puf-puf,
ser solto. Deve chegar na próxima subida, puf-puf, do Lá de Baixo – ninguém no
Céu fala Diabo, nem anjo, nem arcanjo, quanto mais um reles serafim – junto com
uns problemáticos, puf-puf-puf .
Ficamos felizes pela notícia, mas apreensivos com a
inclusão de uma alma sã amiga nossa com um ser problemático. Certamente, novas
histórias apareceriam, menos mal.
Não perderíamos por esperar, vimos dois vultos na
tarde seguinte; vindo a pé, o Biscoito estava trazendo um problemático até nós.
Era gringo e com um sorriso enigmático na cabeça
totalmente raspada, se apresentou, já que ninguém o conhecia: Farrokh
Bulsara. Biscoito retirara-se para um canto e eu juro que ria por dentro do
bigode; fui lá e perguntei:
- Quem é a bichona, Biscoito? Ele me olhou meio
incrédulo, como se eu não fosse capaz de achar outra além do Cole e meio
aborrecido, com a minha desnecessária demonstração de homofobia, em completo desuso
naquelas paragens celestiais.
- Não se preocupe, George, você ainda não o conhece,
mas vai gostar.
Nisso, um dueto mais do que improvável, Paulo Fortes
e Freddie Mercury, iniciou um Anything Goes de arrepiar Bing Crosby. Não se
sabe de onde, uma multidão de jovens overdosados adentrou a nossa esquina e, com
canetas BIC azul celeste, cutucavam o Freddie em busca de autógrafos.
- Nem aqui eu escapo, disse o Freddie desconsolado.
- E a nossa paz se foi, emendou um Cole Porter
enciumado.
Dieck, você com esta prosa bem composta, me leva a ficar mais próximo da crença. Mas tenho tanta coisa que fazer por aqui, que acho que, quanto mais eu descrer, mais demoro a ir embora.
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