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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5256D Data: 12 de janeiro de 2016
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O
REI DOS VEXAMES
Melhor
ser cabeça de baleia do que rabo de sardinha – o dito popular é meio diferente –
mas é assim que pensam os reis. A mim, o destino vem mantendo sobre a minha
cabeça uma coroa permanente, que, embora invisível, ora é reluzente, ora é bem espinhosa.
É
a história de outro reinado que, somado ao das mulheres, torna o fardo do
cidadão comum, plebeu de pai e mãe, mais leve do que esta média de reinados. Passa
na mesma viagem, no mesmo navio e com a mesma tripulação do rei das mulheres. O
que terá dado errado?
Na
verdade, nada. Nunca fui um aluno gabaritado, mas naquele curso da EFORM – Escola
de Formação de Oficiais da Reserva da Marinha, meus resultados nas provas
superaram meus baixos recordes anteriores e fiquei colocado em primeiro lugar.
Dirão alguns que todos estavam em férias e só eu levei a sério, possa ser, mas
o fato é que ninguém chegou muito perto.
Mas
a vida militar não é feita só de provas teóricas, há a disciplina, o cabelo
cortado, o cinto brilhando e o sapato limpo, que, na Marinha, é branco e limpo
mesmo. Aí, o caldo entornou. Dotada de anotações em todos os quesitos, minha
caderneta espelhou uma nota de oficialato nada invejável e fui para o terceiro
lugar.
Muito
a contragosto, fui verificar, já a bordo do nosso “Minas Gerais”, quais eram as
funções reservadas aos primeiros lugares. O primeiro fazia a parada diária –
escapei bem dessa – e o terceiro, eu, distribuía a correspondência e escalava
os quartos de serviço. Como todo mundo em alguma hora precisava trocar o
horário de serviço, a minha banca era procurada por todos e a corte logo se
estabeleceu. Um reizinho reinava a bordo.
Com
estas atribuições especiais, nenhum dos quatro primeiros lugares dava serviço e
eu passava as minhas intermináveis horas de folga na navegação do navio, que se
tornara um hobby para mim. Seis da manhã, ponte do navio, seis da tarde, ponte
do navio e não raro eu preparava as coordenadas da posição para meu bom amigo Continentino,
o responsável pelo serviço.
E
isso ia muito bem, o navio no curso. Diariamente, o comandante do navio, Rafael
de Azevedo Branco, ia à ponte e, já acostumado com a minha presença, dava um
bom dia, sisudo, mas satisfeito, se informava de tudo e seguia para o seu café
da manhã.
E
assim se passou a viagem, fomos a Porto Rico e a Curaçao e, lá pelo fim da
viagem, soubemos que o comandante do navio iria almoçar com os guardas-marinha.
Nessa hora, a Marinha é a tradição em pessoa, quem senta com o comandante são
os mais antigos e os mais antigos são os primeiros colocados.
Chega
a hora do almoço, estou colocado na mesa, na terceira posição, chega o Comandante
Branco. Mais alto do que nós, ele passou a vista por todos – aquilo deveria ser
para ele uma tarefa enfadonha, porém protocolar – e passou com aquele jeitão satisfeito
e sisudo que eu bem conhecia, lá da ponte de comando do navio.
Ao
chegar na mesa, na minha mesa, ele me viu na hora, imediatamente,
instantaneamente e fulminou, agora, mais sisudo: “Este, não! Este eu vejo todo
dia!”
Ao
primeiro brado “Este, não!” surgiram do nada quatro fuzileiros que me
deportaram para a mesa mais longínqua do salão e com a mesma rapidez, colocaram
um desconhecido no meu lugar. Isto se passou sem que alguém ouvisse, ou ligasse,
para a segunda frase do Branco, que continha a explicação, aliás, bem razoável.
Foi
um vexame real e nem me preocupei em dar maiores explicações aos meus súditos,
pois ninguém iria querer saber dos detalhes sórdidos, a lenda já tinha ficado
melhor do que o fato e, se eu desse mais corda, o reinado se tornaria perpétuo.
E assim, me achei normal, me comportei como tal e fui o rei dos vexames apenas até o desembarque.
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