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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5082 Data: 08 de abril de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXIX
JOGO DE DAMAS – Éramos miúdos, como dizem os portugueses, quando o
nosso pai apareceu com um tabuleiro de jogo de damas. Era de madeira, com uma
tampa fina que, fechada, guardava as 24 pedras: 12 amarelas e 12 roxas. Nessa
tampa, havia o desenho de outro jogo, mas que não nos interessou; na parte mais
consolidada da madeira estavam as 64 casas quadriculadas em que se travariam as
disputas.
Antes de começarmos, meu pai citou as
regras: a diagonal escura tinha de ficar sempre a esquerda do jogador, e o
objetivo do jogo era “comer” o máximo possível de pedras do adversário para
vencer. Meu irmão Lopo era muito novo para combater sobre o tabuleiro e minha
irmã não se sentiu atraída por aquilo; jogávamos, então, eu, Claudio, meu pai e,
às vezes, minha mãe.
Com os jogos, fomos apresentados a
outras regras, como o “porquinho”, caso em que um dos disputantes fica sem casa
alguma para movimentar uma das suas peças. Certamente, por causa do nome,
tínhamos eu e meu irmão pavor de perder de perder por “porquinho”. Era
preferível oferecer logo uma pedra para o adversário deglutir do que levar
“porquinho”. Mas houve dois ou três casos em que a partida ficou tão amarrada,
como no futebol em que os técnicos são retranqueiros, que as 24 peças ocuparam
todas as casas, ou seja, não havia como ocupar uma delas. No futebol, o
resultado seria 0x0, mas, no jogo de damas, aquele que tinha a vez de jogar
sofria uma vexaminosa derrota de “porquinho” de 12 peças.
Aprendemos também que havia a
obrigatoriedade de se “comer” a peça adversária, o que era lógico, pois um
jogador sagaz oferece uma ou duas pedras ao seu antagonista com o objetivo de
obter uma troca vantajosa para si, destruindo a defesa inimiga.
Havia alguns coleguinhas do nosso
prédio da Rua Cachambi que também se interessavam pelo jogo de damas, mas com
regras que iam de encontro àquelas ensinadas pelo nosso pai, como “soprar” a
pedra que o adversário não moveu para “comer”. Ela era retirada do tabuleiro
pelo oponente, soprada e ia juntar-se às outras vítimas daquele combate. Aquele
sopro só servia para firmar em nosso espírito o ridículo dessa “regra”.
Às vezes, o Seu Santos, irmão da Dona
Maria e tio do Fernando, nossos vizinhos espanhóis do 203, chamava a mim ou ao
meu irmão Claudio para disputar partidas de dama contra ele. Um dia, a sua irmã
contou à minha irmã, que ele se envolveu com o comunismo na Espanha e teve de
se exilar no Brasil para não ser preso pelo regime do Generalíssimo Franco.
Passou a morar, então, com a irmã, o cunhado, Seu Eduardo e o sobrinho, mas não
era um agregado, ajudava financeiramente na casa; ele e o cunhado, aliás,
trabalhavam numa fábrica da Rua José Bonifácio, quase esquina com a Suburbana.
Eu e meu irmão já havíamos adquirido
algum traquejo com o jogo de damas, enquanto aquilo, para o Seu Santos, era
apenas uma distração, uma das poucas distrações a que se permitia, pois nos
parecia um homem muito sofrido. Quanto ao Seu Eduardo, bem mais extrovertido,
não se importava muito com o jogo de damas, preferia me mostrar, transbordando
de orgulho, revistas espanholas fartas em fotografias com os títulos obtidos
pelo Real Madrid na Europa com aquela equipe estelar de Di Stefano, Puskas, Del
Sol, Santamaria, etc, embora fosse originário de Santander – Dona Maria me
esclareceu que se tratava de Santo André – e torcesse pelo clube da sua cidade.
Quando nos mudamos para a Rua São
Gabriel, os competidores do jogo de damas aumentaram em quantidade e em
qualidade. No puxado que fizeram na parte de trás da sua casa, Seu Dilmar
reunia os amigos para conversar, ouvir corridas de cavalo, jogar sueca e também
damas. Ele não tinha muita paciência com a movimentação de peças num tabuleiro,
por isso, jogou poucas vezes e mal. Frequentava assiduamente a casa do Seu
Dilmar um amigo que morava numa casa de madeira da Rua Americana, cujo nome,
infelizmente, escapou da minha memória. Um dia, nós nos vimos diante de um
tabuleiro de damas na mesa daquela varanda improvisada.
-Eu só sei jogar com as pedras
avançando, nunca recuando para ganhar a do adversário. - disse-me.
Joguei segundo os seus ditames e perdi.
-Só sei jogar “comendo” pra frente e
pra trás.” - devolvi.
Jogamos do meu jeito e venci.
Despontava, na Rua Americana, como um
exímio jogador de damas, o Zé Luís. Ele era sambista, desfilava como passista
na Unidos de Cabuçu e também cantava sambas nos ensaios do Inferno Verde,
depois Unidos do Cachambi, que pertencia ao grupo mais baixo dos desfiles das
escolas de samba no carnaval.
Os garotos, eu e Claudio, não éramos
páreo para ele, os adultos também, não. Meu irmão, que já se mostrava mais apto
do que eu na movimentação das pedras no tabuleiro, ainda lhe dava trabalho.
Uma noite, Zé Luís me viu e me chamou
para acompanhá-lo. Disputaria uma partida de jogo de damas com um mestre,
segundo suas palavras. Subimos a Rua São Gabriel e entramos numa casa onde,
numa varanda iluminada, um senhor, com um tabuleiro de damas e as 24 peças nas
suas posições, sobre uma mesa de vidro, o aguardava. Foi uma partida e tanto,
mas o senhor correspondeu às expectativas: derrotou o Zé Luís.
Em seguida, ele demonstrou interesse em
jogar uma partida contra mim. Apesar dos arroubos da juventude, titubeei, mas,
incentivado pelo Zé Luís, aceitei.
Não, não venci. Neste minidicionário
autobiográfico, a ficção só entra se a minha memória desvirtuar a realidade.
Perdi a partida, mas ela terminou com poucas peças do lado do meu adversário. O
mestre me elogiou, disse que, praticando mais, eu seria um ótimo jogador.
Penso, ainda hoje, que ele fora muito gentil, que não quis mostrar todo o seu
engenho e arte na partida em que nos enfrentamos.
Quanto ao seu aconselhamento, não
segui; começava a ser magnetizado pelo jogo de xadrez.
Voltando ao nosso primeiro tabuleiro de
damas, ele foi dos anos 50 aos 80; depois que as marcas da tinta na madeira se
mostraram gastas pelo tempo, foi guardado como recordação até os anos 90.
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