-------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5080 Data: 06 de
abril de 2015
----------------------------------------------------------
MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXVIII
DINHEIRO –
Não foi no curso primário, comendo pão e banana, enquanto observava os que
merendavam pão e ovo, com a baba bovina e elástica escorrendo pelos cantos da
boca, como escreveu Nélson Rodrigues que passara pela mesma experiência quando
menino, que senti a falta de dinheiro. Não foram também os meus presentes de Natal,
comparados com os dos demais amiguinhos, que me fizeram sofrer com as poucas
posses do meu pai. Naquela época, a mídia televisiva não nos bombardeava, a
partir do momento em que largávamos a mamadeira, com bens de consumo.
Assistíamos aos episódios do “Tom & Jerry” sem sucessivas interrupções com
reclames dos últimos lançamentos dos fabricantes de brinquedo.
O que me fez sofrer com a falta de dinheiro foram as
mudanças de endereço, a saída, com a minha família, de uma casa para outra.
Morávamos na Rua Cachambi, num prédio de seis
apartamentos desde 1955, talvez um pouco antes, não posso precisar. No último
trimestre de 1961, veio a notícia que o senhorio resolvera vender tudo, sem
ferir o direito do inquilino de preferência na compra. Uma ironia amarga, pois
ninguém ali tinha condições financeiras de exercer esse direito. Os vizinhos
espanhóis eram, para mim, como meus familiares mais próximos, pois os parentes
distantes não me abalavam emocionalmente.
Então, os locadores daquele prédio se viram obrigados
a receber os interessados e a mostrar os seus lares. Se não quisessem se
submeter a isso, deviam entregar as chaves ou os pontos. Ficamos o máximo
possível; assim, duas ou três estranhas criaturas foram recebidas pelo meu pai.
Uma delas se manteve na minha memória; era um moço, de uns 30 anos de idade,
que sempre aparecia de terno e, sentado na poltrona da nossa sala, diante do
meu pai, usava vocábulos rebuscados que deveria ter pinçado de alguma obra do
Camilo Castelo Branco.
Não saímos sem luta; a minha mãe pediu à Dona Maria, a
vizinha espanhola, que vedasse uma peça da urdidura dos canos d' água, o que
provocava vazamentos nas paredes do nosso apartamento. Quando o potencial
comprador se deparou com enormes manchas úmidas nas paredes da sala e da cozinha,
reagiu com naturalidade, era esperto, não foi enganado.
No dia da nossa mudança, a minha mãe chorou,
justificava as suas lágrimas com a perda da convivência com tão bons vizinhos.
Na realidade, aquela vizinhança era problemática; a Dona Iolanda do 101, por
exemplo, conseguiu brigar com todos, menos com a minha mãe. Numa das brigas
dela com a Dona Salete, por exemplo, do 202, voou até faca. Num desses embates,
Dona Salete bateu à nossa porta e, depois de entrar, chorou copiosamente,
enquanto era consolada pela minha mãe. Em outra briga, foi a vez da Dona
Iolanda procurar a minha mãe, como era por demais irascível para se debulhar em
lágrimas, execrava a Dona Salete, enquanto a minha mãe a ouvia sem emitir
opinião.
Comportando-se politicamente, ela se orgulhava, na
despedida, de nunca ter brigado com um só daqueles vizinhos.
Fomos para a Rua São Gabriel e os espanhóis, que ainda
não se tinham mudado, vieram nos visitar. Depois, eles partiram para
Jacarepaguá, onde o meu irmão Claudio foi vê-los uma vez. De lá, o Fernando,
filho da Dona Maria, também apareceu para nos ver, até que a distância impôs a
separação definitiva.
Tudo por causa do pouco dinheiro e ficou essa cicatriz
em mim.
Na Rua São Gabriel, também na Americana, pois um beco
na nossa vila nos ligava a esta rua, morei dos 13 aos 16 anos, ou seja, vivi lá
a minha adolescência. Logo, os vizinhos da Rua Cachambi ficaram esquecidos,
mesmo os espanhóis e as peripécias da Escola Manoel Bomfim se desfizeram diante
do mundo novo que se descortinava no curso ginasial do Colégio Visconde de
Caqiru. Eu vivi, nas ruas São Gabriel/Americana, os anos descompromissados que
antecedem a vida adulta.
Então, na passagem do ano 1964 para 1965, passamos por
experiência traumática idêntica à anterior: o senhor das vinte e quatro casas
da vila colocou todas à venda. Alguns inquilinos tinham bala na agulha, como se
diz belicamente e se tornaram proprietários das casas que ocupavam; mas não era
o nosso caso.
Fomos todos para o casarão da minha avó na Rua General
Padilha, em São Cristóvão, com exceção da minha irmã, que foi hospedada pela
família de amigas suas da casa 18. Ficamos fora um mês, dois, até o meu pai se
equilibrar financeiramente.
A minha mãe chorou, de novo, na despedida, lamentando
perder a convivência com vizinhos com que ela se dava tão bem. E eu, mais do
que antes, senti a falta que o dinheiro fazia.
Quando as coisas começaram a se ajeitar, ou seja, os
jornais deixaram de pagar seus empregados com vales e, algumas vezes, com
aparelhos eletrônicos, passando a pagar em metal sonante, o meu pai alugou uma
casa na Rua Chaves Pinheiro e para lá fomos, desafogando o casarão da minha
avó, que já acolhia a família da sua filha mais velha.
Com pouco tempo de Chaves Pinheiro, um influente amigo
do meu pai lhe indicou um trabalho de revisor na gráfica do D.N.E.R., mas ele
titubeou. A intervenção incisiva da minha mãe o fez assumir esse cargo público.
Pouco depois, eu ouvia as seguintes palavras do meu pai:
-Sempre fui getulista, mas não ganhei nada com isso;
com os militares, eu melhorei de vida.
Agora, eu recebia mesadas. Só gastava um centavo em
último caso, acumulei mesadas sobre mesadas. Depois que elas cresceram, tratei
de multiplicá-las – foi a minha maneira de seguiu, em sua totalidade, o
preceito bíblico.
Nas décadas de 80 e 90, dedicava as minhas horas de
almoço, depois de comer, é claro, a acompanhar os preços das minhas ações numa
corretora da Bolsa de Valores.
Alguns conhecidos falavam do meu amor ao dinheiro,
nada mais irreal. Eu não reverenciava o dinheiro, ele não merecia a minha
devoção pelo mal que fizera, pela sua falta nas horas em que tanto precisamos
dele.
A questão é toda essa: ter o dinheiro suficiente para
não ficar sujeito à sua vontade. Das criações humanas, o dinheiro é o menos confiável.
Perdi a fama de Tio Patinhas. De uns anos para cá,
passei a gastá-lo, mas na medida certa, pois, como sabemos, é necessário
cautela para lidar com ele.
Carlos Alberto Torres escreveu: Agora sim, Nelson Rodrigues "comme il faut", com a gema mole do ovo no pão, escorrendo como baba bovina no canto da boca.
ResponderExcluir