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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5078 Data: 02 de
abril de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXVII
CANETA – No curso primário e na admissão, eu só escrevi com
lápis. Todos, mesmos os que comiam pão com ovo na hora da merenda, usavam
lápis; caso alguém aparecesse com caneta, acredito que a professora o impediria
de usá-la. Ela com o giz, e nós com o lápis. Eram lápis que traziam escrito,
longitudinalmente, o nome do fabricante – Johann Faber. Acompanhava-o o
apontador; eram bens complementares no jargão econômico. O diabo era que muitos
desses apontadores eram autênticos comedores de lápis; não seria exagero dizer
que, às vezes, moíam todo o Johann e paravam no “a” de Faber, sobrando em
nossas mãos um cotoco. Assim, tínhamos, sob o risco de cortes no dedo, de
recorrer à lâmina da Gillette que, inegavelmente, apontava melhor a ponta do
lápis do que o apontador. Havia, entretanto, professoras que só faltavam pedir porte
de armas aos alunos que carregassem Gillette no estojo.
O professor que me preparou para os
exames do Colégio Visconde de Cairu, em 1960, corrigia os nossos exercícios com
uma caneta Compactor. Eu olhava, com cobiça, para ela já sabendo que, no curso
ginasial, os lápis cediam o lugar para as canetas tinteiros. Aprovado, pedi uma
Compactor e a ganhei dos meus pais.
Não me considerei apequenado com os
colegas do curso ginasial que ostentavam os diversos modelos da Parker, 21, 51
e 61. Aprazia-me a minha Compactor; gostava de injetar a sua ponta no tinteiro
Quink e de sugar a tinta com o êmbolo e ver a parte transparente do corpo da
caneta carregada, o que não era possível com as outras marcas. Sujei-me mais de
uma vez nessa operação, é verdade, mas o mesmo aconteceria comigo se fosse uma
Parker; nunca fui tão caprichoso quanto as minhas colegas de classe.
Às vezes, a caneta espirrava tinta no
papel, ainda assim, nunca usei mata-borrão e nem vi alguém da turma usando. A
professora que relevasse as manchas nas provas. Mata-borrão era coisa antiga
para nós, do tempo em que se matava as aves para escrever com as suas penas.
Devemos muito aos gansos: a Magna Carta, o Tratado dos Direitos Humanos,
obras-primas da literatura, do teatro, da filosofia, etc. Feita justiça à ave,
prossigamos.
A caneta nos trouxe mais
responsabilidade, não tínhamos, agora, a borracha que apagava os nossos erros;
ainda assim, os mais açodados as buscavam para apagar a tinta, aumentando a
lambança. Com a caneta, vieram as rasuras.
Às vezes, era melhor rascunhar a lápis
e, depois, dar a versão definitiva com a caneta; assim, muitos de nós sempre
deixavam um lápis de sobreaviso, ele não foi descartado de vez.
Numa aula do 3º ano ginasial, a
professora de inglês, uma gozadora corpulenta de ascendência alemã, avisou à
turma que encontrara um lápis perdido no chão, mas que não havia problemas,
pois o nome do seu dono estava estampado nele e leu: Johann Faber.
Paulatinamente, a caneta tinteiro cedeu
lugar às esferográficas, bem mais práticas e tão baratas que carregávamos para
as aulas, três delas, até mais. Eram necessárias mais de uma, pois sempre havia
alguma temperamental que recusava a mostrar a sua tinta no papel.
Já na faculdade, notei que todos, sem
exceção, escreviam apenas com canetas esferográficas. Houve um aluno que, no
começo de uma prova, revelou ao professor que esquecera a sua em casa. Você vai
à guerra sem levar a arma? - foi a reação do professor antes de lhe emprestar
uma.
Embora a caneta Montblanc exista desde
a primeira década do século passado, hoje ela se tornou exemplo de status com
seus modelos de luxo, vendidos, no Brasil, até em prestações mensais. Os
políticos brasileiros, na sua maioria, quando têm de assinar alguma coisa sacam
as suas Montblanc. Tancredo Neves foi uma honrosa exceção; ganhara do
presidente Getúlio Vargas a caneta com que ele assinou a Carta Testamento e a
carregou consigo por toda a vida como um troféu.
Mas, dizíamos, impera entre nossos
políticos a Montblanc. Um cidadão, insatisfeito com esse exibicionismo, postou,
então, nas redes sociais, a imagem de uma reunião do Barack Obama com a sua
equipe; todos portavam canetas esferográficas, inclusive o presidente.
ÓCULOS – Devo ter sido acometido de miopia um pouco antes de
1970, período da minha vida em que eu não olhava muito para longe, ler à
distância entre mim, os livros e as revistas me satisfazia. Depois desse ano,
não, meus olhos buscavam novos horizontes e percebi que havia algo errado, que
não os enxergava como nos bons tempos.
Levado a uma ótica na Rua Arquias
Cordeiro, no Méier, onde havia um oftalmologista, foi constatada uma miopia ao
redor de três graus, se a memória não me falha tanto quanto a vista naquela
época. Eu não era o Monsieur Magoo, mas uma providência tinha de ser tomada.
Houve, então, a encomenda de um óculos
de aros brancos com lentes que mais se assemelhavam a vidros de cristaleira de
tão grandes. No primeiro dia em que o coloquei, sofri a impressão de que todo o
mundo me olhava, era um narcisismo às avessas. E assim foi durante um tempo.
Seria complexo de culpa por participar, durante o curso primário, da turma dos
malvados que chamava os portadores de óculos de “quatro olho”? É verdade que o
John Lennon mudou radicalmente o jogo com aqueles óculos de pequenas lentes
arredondadas e aros finos que fizeram que todos os rapazes de zero a dez graus
de miopia sonhassem em tê-los enganchados no nariz. Ninguém mais falou em
“quatro olho”. Mas, no meu caso, a coisa era diferente, o deboche vinha da
infância, o que pede explicações freudianas.
Quando eu estava sem os óculos, era o
Doutor Jeckyll, mas bastava colocá-los para me sentir o Mister Hyde. Era tudo
um exagero da minha parte; nada como ser uma pessoa gregária para perder a
visão distorcida da realidade. Integrado à turma da Chaves Pinheiro, constatei
que ninguém queria saber dos meus óculos, estavam bem mais interessados nas
calcinhas da Dona Isa penduradas na corda do quintal, onde jogávamos
pingue-pongue, que mais pareciam um paraquedas.
Acostumei-me com os óculos, eles
passaram a fazer parte do meu corpo – mais um exagero – e só os tirava para
dormir e tomar banho.
Ria com desdém quando, na hora da pose
para fotografia, alguém os tirasse do nariz para sair melhor; eu, sem os
óculos, me sentiria menos eu, já bastava o largo sorriso no retrato para me
descaracterizar.
Muitos conhecidos meus, integrantes do
clube dos míopes, trocaram os óculos pelas lentes de contato, mas eu não me
animei com essa substituição. Vinha-me à mente o campeonato mundial de
basquete, que ocorreu no Brasil, em 1963, porque sempre que jogavam os Estados
Unidos, o jogo era paralisado uma, duas vezes e todos se punham a procurar, na
quadra, a lente que caíra dos olhos de um jogador americano. Com o transcorrer
dos anos, elas foram aperfeiçoadas, mas só de pensar em enfiar aquilo no globo
ocular para, antes de dormir, arrancá-las, já me dava aflição. Os óculos são
bem menos invasivos.
Há um conto do Guimarães Rosa que versa
sobre um menino tristonho. Ele descobre o verdor das matas, o azul do céu, a
beleza do mundo, enfim, quando lhe colocam, pela primeira vez, no rosto, um par
de óculos. Essa cena é narrada de uma maneira tão intensa, que não resta dúvida
ao leitor que esse menino era o Guimarães Rosa. Escritor, aliás, que nunca se
separou dos seus óculos de lentes de fundo de garrafa.
Carlos Alberto Torres escreveu: Os meninos que comiam pão com ovo no recreio, eram citados regularmente nas cronicas de Nelson Rodrigues, só que ele acrescentava a gema mole que escorria pelo canto da boca.
ResponderExcluirA gema do BM era dura ?
Roberto Dieckmann escreveu: Permaneço curioso. Jamais comi um pão com ovo no primário. E morri de inveja das mortaNdelas que se comia.
ResponderExcluirNão tive acesso a essas iguarias. Meus problemas se resumiam a garrafas térmicas que quebravam com café com leite (chocolate jamais) e melavam a merendeira pela eternidade e a pão com manteiga.
Na primeira comunhão, provei uma taça de chocolate. Se foi devido ao jejum, não sei, ou talvez a referência do café com leite tenha contribuído - também não sei, o fato é que achei chocolate líquido um manjar do deuses.
Com relação a merendeiras, um fato interessante e melancólico: um colecionador de automóveis do Rio de Janeiro comprou, certa vez, um Studebaker 1947 de uma professora. Acompanhei a chegada do veículo na praça da reunião, vindo diretamente do momento da compra.
Aberto o veículo à inspeção, descobriu-se no descansa-braço do banco traseiro uma merendeira, com garrafa térmica intacta. Imediatamente o proprietário tomou a frente da pesquisa do objeto e com cuidados de um arqueólogo do Egito e combatividade de um taxidermista de mamute, abriu o frasco, retirando a rolha e aspirando o interior.
Pareceu-lhe café com leite, com o que me congratulei à distância. Infelizmente, uns 15 anos depois o colecionador faleceu.
Carlos Alberto Torres escreveu: O chocolate teve o mesmo efeito da primeira pizza para o Biscoito Molhado.
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