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terça-feira, 28 de junho de 2022

3117 - Abaixem as venezuelas de dentro da picape de Hatari! (R)

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2108           Data: 02 de julho de 2004       

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SOBRE UM TEXTO DO HENRI MURICI DE MESQUITA


Vi Spartacus com uns dezesseis anos na segunda fileira do cinema Roulien que não ficava no Meyer e sim em Todos os Santos; mas bastava dobrar a esquina da Aristides Caire com a Arquias Cordeiro, e a uns trezentos metros já se entrava no cinema. Quando levaram o filme do Stanley Kubrick, não se entrou com essa facilidade: a fila lembrava, pelo tamanho, aquelas filas da carne no tempo do Plano Cruzado e dos adesivos nos carros “Cruzado: eu acredito.” Consegui sentar na segunda fileira do poeira (era no tempo em que cinema pobre era assim chamado), suportando dois efeitos colaterais:  a primeira fileira de cadeiras ameaçava cair nas pernas dos ocupantes da segunda, e a obrigação de quase encostarmos a nuca nas costas para enxergar as peripécias na telona. 

Spartacus foi, dos quatro filmes o primeiro que me surpreendeu nas redondezas do Meyer pelo número de espectadores. O segundo, vi alguns anos antes, quando ainda não saía sozinho do meu bairro,  “Os Dez Mandamentos” do Cecil B. de Mille. Foi no tempo em que o Jânio Quadros obrigava um filme nacional junto com um estrangeiro. Isso não foi um estorvo para a  minha mãe que, pegando a filharada, levou para o Cinema Mascote, onde nós ficamos por seis horas: quatro  horas do filme citado mais as duas do “Absolutamente Certo” com a Dercy Gonçalves e o Anselmo Duarte.  Mais crescidinho,  eu, meu irmão e alguns colegas, numa noite de sábado, pegamos o bonde  Cachambi para assistir ao filme que inaugurava o Bruni-Meyer, “Hatari!”. Toda a cidade do Rio de Janeiro tivera a mesma idéia, pois não conseguimos nem pisar na calçada em frente do cinema. O quarto filme me surpreendeu tanto pelo acúmulo de gente diante do cinema Art-Palácio Meyer, numa matinê de dia de semana, que até o nome da fita eu esqueci, só me recordo que se tratava de uma macaquinha que serve de enfermeira de um tetraplégico e se apaixona por ele; não se tratava, porém, de uma macaquicice pornô, e sim de uma história macabra. Surpreendi-me pela enormidade da fila porque já estávamos na década de 80, quando raramente os antigos cinemas lotavam, principalmente às duas horas da tarde de uma quarta ou quinta-feira. Descobri, depois de uns dez minutos na tal fila, que a mesma vinha do Banerj, e era composta de professoras do estado que, depois de muito tempo de greve, recebiam os seus proventos. Disfarcei, saí da fila com alguma dificuldade, pois ela também crescia para os lados, e fui até à bilheteria do Art-Palácio Meyer, ao lado do banco, onde encontrei só duas ou três pessoas que não eram professores atrás do salário.

Paro aqui estas reminiscências para declarar o que deflagrou essa minha volta ao passado: o filme “Hatari!” citado num texto escrito pelo Dieckmann com o pseudônimo de Henri Murici de Mesquita na revista “Radiador”. Nós, que lemos alguns contos da lavra do autor na citada revista, preferimos aqueles que escreveu com pseudônimo feminino, tanto que a principal cláusula do seu contrato para redigir uma consultoria sentimental no Biscoito Molhado é o pseudônimo de Madame Waleska. No entanto, Dieckmann se saiu bem no seu animus (a porção masculina, segundo Jung) de Henri Murici de Mesquita. 

São dois episódios, duas musas – Picapes Chevrolet dos anos 50. A primeira musa era conhecida como risadinha e, informa o autor, também cinéfilo, que era igual à usada por John Wayne no “Hatari!”. Na história dieckmaníaca, quem sai da picape não é o machão do cinema americano, e sim um amigo da confraria dos colecionadores de carro, que nascera no banco da frente duma Chevrolet dessas, devido a um Ford enguiçado. Lembrei-me logo (quase sempre um fato inusitado puxa outro na minha memória) do nascimento do Barão de Itararé: nascera num vagão de um trem que parara surpreendentemente no meio do percurso:

- “Saí, então, da barriga da minha mãe para ver o que estava acontecendo.” - disse o Barão numa entrevista na TV.

No segundo episódio, a musa já não ria tanto quanto no primeiro, e provoca lembranças sobre pescarias e, principalmente, caçadas. Dieckmann aproveita o ensejo e mostra todo o conhecimento    que adquiriu em canicultura como dono que foi do Abóbora, do Feijão e da Vitória (cadela cujo nome é uma homenagem do Dieckmann ao seu compadre, também pianista e leitor do Biscoito Molhado, Vitorino, ou Vitório, para os íntimos; ou Vitória, para os mais íntimos ainda.” 

Nós, que somos humildes, apesar das dúvidas em contrário... Quem não é humilde é o distribuidor e divulgador deste periódico, que põe em prática a seguinte frase do ex-boxeador Cassius  Clay: “Eu bem que tento ser modesto, mas logo me faltam argumentos.”    

Rebobinando: nós, que somos humildes, apesar das dúvidas em contrário, muito aprendemos sobre vira-latas no trecho dieckmaníaco. Aprendemos que os vira-latas dos bons trazem no DNA “restos de pastor alemão não luterano e traços de fox-terrier comum; a perseverança do primeiro com o faro e a histeria do segundo”. Involuntariamente, Henri Murici de Mesquita joga luz sobre os cinco vira-latas que tivemos há alguns anos. Sempre que lá em casa colocava-se na vitrola o LP “Ray Conniff meets Billy Butterfield” na faixa “Taste of Honey”, os cinco uivavam desesperadamente. Sabemos agora que os genes que eles herdaram dos fox-terriers eram a causa de tanta histeria. Mas o comportamento dos nossos vira-latas era mais complexo, e ainda assim a luz lançada pelo texto dieckmaníaco chega até ele. Os uivos começavam no instante em que as primeiras notas sopradas por Billy Butterfield no trompete soavam, e se tornavam menos estridente, e até mesmo num acompanhamento tranqüilo, quase à “boca chiusa”, quando o som da orquestra do Ray Conniff se impunha. Ora, Billy Butterfield foi considerado um músico de jazz respeitável, enquanto Ray Conniff, elogiado tocador de trombone da orquestra de Artie Shaw e Harry James, passou a ser conhecido,depois, quando chefe de orquestra, como um arranjador de música de elevador. Por que, então, essa lamentável lacuna no gosto musical dos meus vira-latas? Como Dieckmann explicou, os restos de pastor alemão que entraram no DNA dos vira-latas não são de luterano. Bach não era pastor, mas mesmo que fosse, era luterano, era apenas alemão; aí estão duas razões para os vira-latas se afastarem tanto da boa música apesar do código genético alemão.

Bem, poderíamos encerrar por aqui, mas como citamos o Barão de Itararé, e escrevemos umas três edições sobre erros palatáveis e grosseiros em menos de dez dias, vamos antes contar um episódio em que o humorista mostrou toda a sua compreensão diante do erro alheio.

O governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, despachando no seu gabinete, no Palácio da Liberdade, sentindo-se incomodado pelo clarão do sol, bradou a seguinte ordem: “Baixa essa  venezuela”. O Barão de Itararé justificou o governador argumentando que se, na Pérsia, aquele tipo de cortina é chamado de veneziana, e em Veneza, de persiana, por que, então, não podemos chamá-lo no Brasil, de venezuela?     


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