O BISCOITO MOLHADO
Edição 2111 Data: 07 de julho de 2004
JUSTIFICANDO O NOME
Lembro-me que ninguém estava só com um radinho de pilha. Nélson Rodrigues até criou a expressão “mais só do que Robinson Crusoé sem radinho de pilha”. O grande navegador inglês, William Dampier, que realizara um minucioso levantamento da costa oeste australiana, na sua última viagem, em 1711, trouxe de volta ao mundo dito civilizado um tal de Alexander Selkirk, que estava há anos abandonado na remota ilha de Juan Fernandez ao largo do Chile. Inspirou com a sua história Daniel Delfoe a escrever o romance Robinson Crusoé, e pela solidão, a expressão que citamos do Nélson Rodrigues.
O radinho de pilha surgiu nos anos 50 com o espetacular reerguimento do Japão das cinzas da Segunda Grande Guerra. Era da marca “Spica” o primeiro radinho de pilha que vi; pertencia ao noivo da minha tia que, quando procurava um lugar isolado do casarão da minha avó, para noivar, não conseguia ficar sozinho com a minha tia caso levasse também o “Spica”: eu, um garoto fascinado pelo radinho, ia sempre atrás.
Não era só eu, havia, no mundo todo, gente fascinada pelo “Spica”. Recentemente, esbarrei com um texto de um argentino intitulado “La Spica, pequitita pero cumplidora” (pequenina, mas resolve), onde diz, entre outras coisas:
-”La aparición de un pequeño adminículo, el transistor, modificó los hábitos de toda una generación, que lejos estaba de suponer lo que sus ojos alcanzarían a ver en materia de cibérnetica. Pero junto com él o mejor, merced a él, llegó a nuestras manos la radio portátil y el símbolo por excelencia de esa revoluctión se llamó Spica... Hasta su arribo, escuchar radio implicaba una compleja negociación familiar para lograr la mejor ubicación frente ao voluminoso aparato. Pero a partir de la introducción de la Spica se hizo posible hasta escuchar el programa favorito...”
E paramos por aqui com a transcrição do texto argentino antes que algum leitor insinue que o Biscoito Molhado se integrou ao Mercosul.
Fizemos referências, na última edição, mas não muitas, dos 50 anos do marco alemão - nome com que ficou conhecida a moeda criada na política do celebrado pai do milagre econômico alemão, Ludwig Erhard – e agora, com o radinho de pilha, pretendemos registrar apenas o início da reação da economia do Japão do yen depois das cinzas da guerra.
E o Brasil?... Bem, o Brasil comemora com manifestações meio chochas os dez anos do real. Um dos seus pais, que são muitos, foi o André Lara Resende. Na época em que o Otto Lara Resende era um personagem obsessivo do Nélson Rodrigues, este escreveu que o Otto era pai de um menino tão inteligente que seria presidente da República: era o André. Nélson Rodrigues, que já fora a primeira pessoa a chamar Pelé de rei do futebol depois de um Santos x América, em 1957, errou na previsão.
Fernando Henrique Cardoso, esse sim, o inteligente que chegou à presidência da República no Brasil (talvez o único), acaba de escrever sobre esses dez anos do Real. É suspeito para escrever, pois era o ministro da Fazenda durante a gestação e parto da moeda, mas não lambeu tanto a cria a ponto de delirar. Eis um parágrafo da escrita do ex-presidente.
-”Se o Real teve alguma virtude foi, além da criação da URV, a decisão de abrir o jogo: tudo foi feito informando a população, sem surpresas, com a antecipação do que poderia ocorrer. Sem a compreensão e a adesão da sociedade, o plano teria ido ladeira abaixo.” -
-”Justificas o teu nome” - dizia Balzac ao seu empregado, que se chamava Paradis, sempre que este lhe trazia boas notícias. O Real justificou o seu nome, pois dissipou as nuvens espalhadas pela hiperinflação que ocultava a realidade. Muitos bancos já estavam quebrados. Recordo-me que freqüentava a Corretora Caravelo na década de 80, e já ouvia os conselhos dados aos clientes para evitarem o Bamerindus, abarrotado de papagaios do escândalo da SUNAMAM. Mas só com os abalos da estabilização com o Real, o banco caiu, embora o seu presidente fosse o ministro da Agricultura do governo FHC. Outra aberração provocada pela hiperinflação brasileira era o fato de o Banespa pagar um dos melhores dividendos da Bolsa de Valores, quando os seus maiores acionistas – as estatais paulistas – eram os seus maiores devedores: não pagavam a uma instituição, e ainda recebiam dinheiro dela.
Tudo era permitido num país em que a inflação atingiu de 1980 a 1993, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas a marca de 146 bilhões, 219 milhões, 946 mil e trezentos. Na Alemanha, quando a hiperinflação de 1923 transformava as economias de toda uma vida num frugal café da manhã, o autor do livro “A República de Weimar”, Lionel Richard, registra que muitos endinheirados ganharam ainda mais com a explosão dos preços, como as indústrias dos Krupp, para darmos um exemplo mais conhecido.
O Real, desanuviando o ambiente hiperinflacionário, desagradou a muitos poderosos no início, mas depois os recompensou com os altos juros. Passados dez anos, os juros batiam os 1006% , enquanto a inflação pelo IPCA acumulava 167%.
Se o Real justificou o nome, como o Paradis de Balzac, no que concerne ao fim da hiperinflação, durante um bom tempo deu a ilusão aos brasileiros de pujança por causa da taxa de câmbio sobrevalorizada. Com um PIB de 900 bilhões de reais ou 900 bilhões de dólares, no início do Plano Real, quando um real equivalia um dólar, nós éramos a oitava economia do mundo, mas quando o real passou a justificar o seu nome, vemos hoje que o Brasil é, na verdade, a décima quinta economia do mundo, e que o PIB, hoje, de 1,4 trilhão de reais, representa apenas 450 bilhões de dólares com o câmbio 3,11 reais igual a 1 dólar.
O Plano Real mostrou a dura realidade que é o empobrecimento do Brasil na esfera mundial: 50 % em dez anos, ou seja, de US$ 900 bilhões para US$ 450 bilhões.
Afirmar que o empobrecimento do Brasil é provocado pelas dívidas seria, ao nosso ver, simplificar a questão. Aqui sempre existiu uma irresponsabilidade fiscal: os políticos sempre gastaram a mancheias o dinheiro do contribuinte com mira nas urnas. Nessa última eleição mesmo, os quatro candidatos a presidente da República, Lula, Serra, Garotinho e Ciro Gomes foram a Brasília, no meio da campanha, prestar homenagem ao centenário do maior gastador deste país, Juscelino Kubitschek. Presidente que hoje é reverenciado, graças à mediocridade do regime militar que o transformou em mártir. Juscelino construiu uma cidade em três anos, e foi chamado por Nélson Rodrigues de “Canalha Dionisíaco.” Falando em Nélson Rodrigues, se vivo ainda fosse, já teria atualizado a expressão “só como Robinson Crusoé sem radinho de pilha” para “só como Robinson Crusoé sem celular”. Neste país, afinal, foge-se como o diabo da cruz da Lei de Responsabilidade Fiscal trazida pelo Plano Real, e venera-se um celular.
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