Fui aluno de francês, no Colégio Estadual Visconde de Cairu, da dona Cacilda. Não sei dizer se dona Cacilda era um Caxias de saia, ou se Caxias foi uma dona Cacilda de calças; isto porque, nos seus anos de magistério – segundo a lenda – ela só faltou uma vez às aulas. E a falta de dona Cacilda se deu porque, morando em Niterói, houve uma greve do pessoal das barcas. O segundo dia da greve, no entanto, não representou o segundo dia de ausência da dona Cacilda: ela que, assim que estourara o movimento reivindicatório dos marítimos, se atirara ao mar, chegou ao Rio de Janeiro depois de vinte e quatro horas de nado pela travessia. Nadava mal, mas ensinava bem.
Com dona Cacilda, comecei a conhecer os mistérios da língua de Victor Hugo, da língua de Anatole France, da língua de Emanuelle.
Infelizmente ela, como professora, só durou um ano para mim, pois no segundo ano ginasial ela foi substituída por um professor com umas idiossincrasias fronteiriças à frescura. Por exemplo, ele não se conformava com o fato de a palavra exército, em francês, ser feminina.
- “O glorioso exército de Napoleão feminino...” - bradava em aula.
- “L' armée”.- estrebuchou.
- “O que é isso, professor?” - indagou um aluno.
- “Exército, em francês”.- explicou.
- “Mas nem parece feminino”.- garantiu esse mesmo aluno com a concordância dos demais.
Só anos depois, lendo um livro de um gourmet inglês – sim, existe gourmet inglês - seu nome é Peter Mayle e foi para a França com o objetivo de provar iguarias refinadas, escrevendo, então, o livro “Um ano na Provence” que mereceu, na Inglaterra, o prêmio de melhor livro de viagens de 1990 e, em seguida, escreveu “Toujours Provence”. Mas o que eu pretendia mesmo dizer?... Já me lembrei: só anos depois, lendo “Toujours Provence”, soube que vagina, em francês, é uma palavra masculina. Sendo Peter Mayle inglês, expressou toda a sua dificuldade, no livro em questão, para entender os gêneros que os franceses atribuíam aos substantivos, principalmente o...”Le vagin”.
- “Como pode o estudante perplexo esperar aplicar a lógica a um idioma em que vagina é masculino?” - escreveu.
O inconformismo do escritor com a masculinidade da vagina me lembrou o inconformismo daquele meu professor do segundo ano ginasial com a feminilidade do exército francês.
No terceiro ano ginasial, ainda estudamos francês no Visconde de Cairu, mas a influência do ensino da língua inglesa já começava a ofuscar o idioma que, por séculos, as pessoas requintadas do mundo civilizado estudavam para brilhar. Estudavam tanto que falavam francês igual, ou melhor, que os próprios habitantes da França. Narra Tolstoi, no Guerra e Paz, que os aristocratas de São Petersburgo, ao saberem que Napoleão preparava a Grand Armée para invadir a Rússia, estipularam uma multa para cada palavra francesa que eles pronunciassem nas suas conversações. Em pouco tempo, tiveram de desistir das multas, pois lhes era impossível expressar-se sem as palavras francesas.
Certa vez, ouvimos um locutor da Rádio MEC anunciar a transmissão de uma obra musical contemporânea: “Le trois couleurs de soleil couchent” (As três cores do pôr-do-sol), rapidamente desligamos o rádio, pois toda a melodia da composição já se encontrava no título. A atonalidade que se seguiria nos mais diversos instrumentos da orquestra contradiriam o nome da música.
Não foi à toa que um dos poemas mais musicais la literatura universal, “Chanson D' Automne” de Paul Verlaine, serviu de senha para a invasão das forças aliadas na Normandia, no Dia D, 6 de junho de 1944.
“Les sanglots longs
Des violons
De l' automne
Blessent mon coeur
D' une longuer
Monotone”.
Ouvindo-se os soluços dos violões do outono de Paul Verlaine, imagina-se tudo, menos a guerra; nada mais imaginativo, portanto, para despistar o inimigo do que esse poema.
Mas chego quase ao final desta edição do Biscoito Molhado, e constato que rememorei, falei, citei, quase delirei e não entrei no assunto da liga de mulher usada pelo rei Eduardo III, contada pelo nosso Causídico Verborrágico.
Terminemos, então, mas sem antes citar as palavras do rei, que não foram somente as da famosa frase. Primeiro: uma pequena introdução histórica (o texto vai em francês em homenagem à dona Cacilda):
“Durant le bal, la Comtesse de Salisbury, maîtresse du roi Edouard III, perd lors d' une danse la jarretière bleue qui maintenait son bas. Edourd III s' empresse de la ramasser et de la lui rendre. Devant les sourires entendus et railleurs de l' assemblée, le roi se serait écrié en français, alors langue officielle de la cour d' Anglaterre:
- ”Messieurs, honni soit qui mal y pense! Ceux, qui rient en ce moment seront un jour très honorés d' en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement”.
O rei Eduardo III afirmou que os que riam da sua liga de mulher na perna, procurariam com todo o denodo, um dia, a honra de usar uma liga semelhante. Ele já imaginava, ao proferir tais palavras, instituir a Ordem da Jarreteira. Ainda assim, a sua masculinidade gera dúvidas até hoje.
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