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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

1992 - Sabadoido, genesis

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3822 Data: 05 de agosto de 2011

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55ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

- Plínio Doyle, que surpresa agradável recebê-lo aqui!

- Por pouco, não apareço.

- Por que? O trânsito do além para o aquém-túmulo está muito tumultuado?

- Porque apenas escritores entram aqui e eu chegava aos noventa anos sem ter concluído um livro. Todo mundo rabiscou pelo menos um soneto na adolescência. E eu, nada! Não arrisquei um conto, um poema. Pouco antes de morrer, atrevi-me a escrever “Uma Vida”, livro de recordações.

- E foram tantas recordações, que você nos poderia brindar com dezenas de milhares de páginas.

Depois de um sorriso bonachão, reagiu:

- Nada! Eu não tinha o temperamento vulcânico de um Pedro Nava, por exemplo, que escreveu muito, depois que pendurou o jaleco de médico.

- Os livros de Pedro Nava, que estão um pouco esquecidos, são leituras obrigatórias. - comentei.

- Eu pesquisava muito, era o meu prazer. Catava nos arquivos da Justiça autos de processos que tivessem ligação com a Literatura. Descobri, assim, os testamentos do Senador José Martiniano de Alencar, pai do romancista José de Alencar.

- José de Alencar foi o autor, em nossa língua, que mais li, entre treze e dezoito anos. Eu sofria muito com a riqueza vocabular dele, mas foi melhor para mim do que pegar, naquele tempo, os livros da maturidade do Machado de Assis, pois eu pouco entenderia. - aparteei-o, com minha garrulice.

- Também descobri os autos do processo criminal sobre a morte de Euclides da Cunha.

- Esqueci-me de que você era advogado.

- Estudei na Faculdade Nacional de Direito e entrei, então, para o CAJU. Falo de outro Caju, o Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e Socais, seleto grupo composto, entre outros, por San Tiago Dantas, Antonio Gallloti, Gílson Amado, Otávio de Farias, Américo Jacobina Lacombe...

- Recebi, dia desses, a visita de Vinícius de Moraes e falamos dos amigos dele na faculdade, que eram praticamente todos esses mencionados por você.

- Pois eu ia mesmo concluir minhas citações com o nome do Vinícius.

- Vocês, então, foram colegas?

- Sim, apesar de eu ser mais velho. Nasci em 1906, e ele, em 1913.

- Ele foi, prezado Plínio, incontestavelmente, a personalidade mais culta da música popular brasileira, mas até as letras da época da Bossa Nova, seu talento se apurava. Depois, o excesso de consumo de álcool esgarçou sua criatividade.

-Churchill afirmou que tirou da bebida mais do que a bebida tirou dele, mas poucos podem repetir o estadista inglês. - interveio.

- Mas falávamos de seu livro de recordações.

- Uma delas foi o enterro de Rui Barbosa, que presenciei. Foi em 1923.

- Segundo Medeiros e Albuquerque, não teve a mesma comoção popular do cortejo fúnebre do Barão do Rio Branco, do Floriano Peixoto e do João do Rio.

- Sobre a morte de Rui Barbosa, Medeiros e Albuquerque escreveu que o político baiano se reuniu com colegas da Bahia, para ajustar a escolha do governador daquele Estado, quando recebeu uma carta de Aureliano Leal, justificando a sua ausência à reunião. Essa carta dizia também que a escolha deveria caber ao Presidente da República. Era uma artimanha, pois ele sabia que era, ele mesmo, o preferido do primeiro mandatário do País. Furioso, Rui Barbosa vociferou durante mais de uma hora! Dois dias depois, estava morto! Escreveu Medeiros e Albuquerque que a causa da morte foi “traumatismo moral”.

- Eu diria que foi “crise aguda de cólera”... - atalhei.

- Assisti também à estreia de Procópio Ferreira no teatro.

- Procópio Ferreira começou logo após João Caetano abandonar as gambiarras. - não perdi a piada, pois sabia que o ator citado por mim brilhara no tempo do Segundo Império.

- Também me lembro dos trotes de calouros da Faculdade. Lembro-me, por exemplo, que obrigaram um rapaz a discursar durante uma hora sobre a utilidade e a necessidade de pince-nez em narizes aduncos.

E completou com desalento:

- Hoje, os trotes não são mais assim.

- Os estudantes, que entram nas Faculdades, atualmente, nem sabem o que é adunco. - completei.

- Refiro-me, contudo, à violência nos trotes. Mataram até um calouro de Medicina, em São Paulo. Mas não falemos nisso, agora.

- Você foi advogado da Editora José Olympio?

- Fui. De 1935 a 1960.

- Planejou também a criação do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, com Homero Homem e Adonias Filho, e fundou o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, não é?

- Sim, sempre estive ligado aos livros. Apenas não escrevia.

- Jorge Luís Borges declarava, com outras palavras, que se sentia mais satisfeito como leitor do que como escritor.

- Mas ele escreveu muito. E admiravelmente! Eu, como disse, só escrevinhei um pequeno livro poucos anos antes de morrer.

- E foi com esse amor pelos livros que sua biblioteca se tornou uma das mais importantes do país, com vinte e cinco mil volumes.

- Quando cheguei aos oitenta e três, cogitei sobre a proximidade da morte. Meus grandes amigos estavam partindo e era hora, então, de considerar o futuro de outros grandes amigos meus: os livros.

- E os vendeu?

- Vendi. Para a Fundação Casa de Rui Barbosa.

- Eu só posso imagina, Doyle, sua amizade pelos livros...

- Quando era advogado da José Olympio, costumava almoçar com Guimarães Rosa. Certa vez, comprei uma tradução para o inglês de uma obra do Rosa e, com alguma ansiedade, mostrei-lhe...

- E ele?

- Deu-me logo uma tremenda bronca...

Nesse instante, começou a imitar a voz e o jeito do autor de “Grande Sertão: Veredas” :

“- Esses editores estrangeiros são um lixo! Sempre jogo fora as traduções que me mandam!”

- E você, Plínio Doyle, também jogou no lixo aquela tradução?

- Se jogasse fora um livro, não ficaria em paz com minha consciência. - respondeu incisivamente.

- Soube que você colecionou inúmeras edições de “Iracema”, de José de Alencar.

- Tive mais de cem edições diferentes da obra. - afirmou.

- E é legendária a paciência que o levou a encadernar, durante quase vinte anos, os suplementos literários dos mais importantes jornais brasileiros.

- Foi sim, de três jornais.

- E as raridades?

- Posso citar uma delas - a edição de 1901 de “Poesias Completas”, de Machado de Assis. No original da obra, Machado de Assis escrevera: “ ...a afeição do meu defunto amigo a tal ponto lhe cegara o juízo...”. O distraído tipógrafo, nessa edição, trocou o “e” de “cegara” por um “a”, o que quase levou o escritor à completa exasperação. Ele saiu em campo, por livrarias e outros locais da cidade, corrigindo, com as próprias mãos, quantos exemplares dessa edição pudesse encontrar. Um desses exemplares, com a retificação feita por ele, eu tenho em minha biblioteca.

- E o Sabadoido, Plínio Doyle? – indaguei, entre pressuroso e irônico.

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