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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Vinicius 1 e 2

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3819 Data: 02 de agosto de 2011

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53ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

- Poeta, eu pressentia sua presença, mas ela nunca se materializava aqui em casa.

- Isso aconteceu porque eu não entendia bem o que você escrevia em seu jornal.

- Escrevi que, na despensa de minha casa, só existiam garrafas de vinho e, por isso, você não aparecia. Mas foi editada outra coisa.

- Em minha época de estudante, manuscrevia o jornal “O Planeta” e cuidava de tudo.

- Eu cuidei agora: estou com seu melhor amigo, para recepcioná-lo.

- O cachorro engarrafado?...

- Eu diria um canil engarrafado: são cinco garrafas de uísque.

- Não chega a formar um canil. - criticou.

- São apenas seus; você fica com seus amigos escoceses e eu, com meus amigos chilenos. - disse, pensando nos vinhos.

Aproveitei que Vinícius de Moraes sorvia o primeiro gole de uísque, e fui direto a uma pergunta delicada:

- Você recebeu com indiferença a notícia de que fora demitido do Itamaraty?

- Fiquei indignado, porque estudei obstinadamente durante dois anos para passar no concurso. Fui reprovado em 1942, mas passei no ano seguinte. Se eu soubesse, no além, das palavras do presidente João Figueiredo, na entrevista que ele concedeu à revista VEJA, em janeiro de 2000, ficaria possesso.

- Eu tenho essa entrevista, posso ler um trecho?

- Pode! Como ele pediu para ser esquecido, vamos lembrá-lo!... - riu zombeteiramente.

E eu li o que disse dele João Figueiredo, apenas trocando o “ele” inicial por Vinícius:

“- Vinícius até diz que muita gente do Itamaraty foi cassada ou por corrupção ou por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi por vagabundagem mesmo. Eu era o chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu, ganhando seis mil dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com um copo de uísque na mão. Nem pestanejamos. Mandamos brasa!”

Ao encerrar minha leitura, pensei em lhe dizer que, mesmo vivo, ele já era um fantasma, mas considerei melhor política calar.

- Fui aposentado do Ministério das Relações Exteriores pelo Ato Institucional nº 5. Nesse ano de 1968, realizei vários shows, em Lisboa, com Chico Buarque e Nara Leão.

- Contam que, em uma exibição sua, em Portugal, estudantes salazaristas se postaram diante do teatro para hostilizá-lo.

- É verdade. Aconselharam-me à retirada pelos fundos do teatro, mas preferi enfrentar os manifestantes. Parei diante deles e, quando se fez silêncio, declamei, de mim mesmo:

“De manhã escureço.

De dia tardo.

De tarde anoiteço.

De noite ardo. ”

- Então, um estudante tirou a capa do seu uniforme e o estendeu no chão, para que eu passasse sobre ela. E os outros estudantes o imitaram. Foi um triunfo!

- Seu sonho juvenil era se tornar um grande poeta?

- Com menos de vinte anos, escrevi meu primeiro livro de poesia, O Caminho para a Distância, que foi editado em 1933. Com ajuda de meu pai, paguei a edição do livro.

- E a aceitação?

- João Ribeiro escreveu um artigo, dizendo que eu precisava praticar o verso livre, que os sonetos não eram bons. Foi um bom estímulo, mas doeu-me bastante, na época. Eu realmente me considerava um Poeta com P maiúsculo e tudo mais... Um artigo do Manuel Bandeira me deixou louco. Ele “ousava” escrever, colocando meu livro ao lado de vários outros, que eu realmente tinha vocação poética, mas precisava muito abandonar o tom “schmidtiano”, metrificar minhas linhas, deixar de muitas facilidades com verso livre, que só é bom na mão dos mestres. Como fiquei queimado! Achei que Manuel Bandeira não entendia nada de poesia...

- Falando em “schmidtiano”, você procurou mesmo por Augusto Frederico Schmidt?

- Eu tinha dezenove anos de idade quando, com a ajuda de Octávio de Faria, fui solicitar a Augusto Frederico Schmidt que distribuísse o livro. Encontrei-o à porta de sua livraria e me senti, na minha magreza, apequenado por sua corpulência. Olhou-me e disse: “Mas é uma criança!...” Eu me considerava um gênio - a reação dele me magoou muito.

- E o público, Vinícius?

- O Caminho para a Distância passou despercebido ao público. Mais tarde, após um desentendimento com o livreiro, recolhi a edição e a usei – isso depois – para evitar que a água entrasse por baixo da porta de meu estúdio, quando um temporal castigou o Rio de Janeiro.

- Seu segundo livro saiu dois anos depois, 1935, Forma e Exegese.

- Um título pedante pra cacete! - criticou, enquanto pousava o copo de uísque na mesinha da sala.

- Sim, mas com ele você recebeu o Prêmio Felipe d´Oliveira, de 1935, derrotando Mar Morto, de Jorge Amado.

- O romancista Octávio de Faria me jogou muitos confetes, mas estaria ele sendo isento?... Gostava muito de mim, incentivava-me. Muitos anos depois, veio a crítica de Otto Lara Resende, tão boa que decorei as palavras:

“Em Forma e Exegese, o poeta espraia-se num ritmo solene, é um sacerdote que, do alto de sua sapiência, fala à multidão, sem com ela confundir-se. É ainda mais ambicioso, mais altissonante, mais pomposo que no primeiro livro. Mantém a contemplação narcisista de seus provavelmente imaginários sofrimentos pessoais, os sustenidos artificiosos e falsetes que não lhe pertencem. O poeta ainda faz pose, a mostrar uma inquietação mais ou menos postiça e uma ênfase muito mais adolescente do que poética.”

- O Otto Lara Resende possuía uma inteligência e um sarcasmo portentosos. Nélson Rodrigues não se conformava de ele não escrever muito.

- O Otto era de 1922. Eu era, portanto, nove anos mais velho. Ele fez uma espécie de revisão crítica de meus poemas e mostrou sua apurada lucidez e sua refinada ironia. - disse o poeta.

- Você estudou no Colégio Santo Inácio, depois na Faculdade de Direito, na Rua do Catete. A elaboração de poemas não o atrapalhava nos estudos?

- Você não leu o que minha irmã Lygia disse a meus biógrafos?... Um desses biógrafos é o irmão do Toquinho, meu último parceiro na música popular brasileira.

- Li, mas gostaria de ouvir de você.

- Lygia disse que eu tinha caraminholas na cabeça, que transformava tudo em poesia. Reportou-se a uma prova final que perdi na faculdade. Uma bronquite me derrubou e tive de prestar, sozinho, o exame. Fui aprovado com menção honrosa e o professor comentou que a aprovação se devia mais à beleza da linguagem empregada por mim do que ao conhecimento da matéria.

- E quando foi que você se avistou pela primeira vez com Manuel Bandeira?

- O encontro com Manuel Bandeira, que coisa excelente foi! Eu ainda tinha várias dificuldades em relação à sua poesia, mas intimamente mudara muito. Se, no princípio, me quisessem levar a ele, talvez tivesse relutado, mas depois, não. Manuel me escrevera um cartão, agradecendo a remessa de Forma e Exegese, que me remexeu por dentro. Lia-o às vezes, a Manuel, invejando-lhe secretamente a sobriedade perfeita do verso, mas sempre em oposição ao modo de sua poesia. Mas - ai de mim! - já amava aquele poeta. Meu coração de mulher da vida já batia por ele. Andava dando um jeito para encontrá-lo.


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3820 Data: 3 de agosto de 2011

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54ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA:

AINDA VINICIUS

- Vinícius de Moraes, no meio de seus versos a la Paul Claudel, como você mesmo reconheceu, não havia lugar para o cotidiano, que era cultivado pelo Manuel Bandeira. Como a música popular brasileira entrou, então, em sua vida? – indaguei.

- Ela sempre esteve presente. Meu pai, funcionário da prefeitura, era violinista amador e minha mãe, pianista amadora. Nasci bebendo leite e ouvindo música. Depois, abandonei o leite, mas prossegui com a música. No Colégio Santo Inácio, com onze anos de idade, entrei para o coral. Lá, conheci Haroldo e Paulo Tapajós, que tocavam violão. Compus minhas primeiras canções com eles e as apresentávamos nas festinhas do colégio.

- Mas você separava bem sua poesia séria da popular.

- Confesso que achava que a música era um ato menor. Isso era no tempo em que me julgava O POETA. Aquelas besteiras que a gente pensa quando jovem.

- A letra de uma canção não é um poema, embora o DNA seja o mesmo. A letra tem de se ajustar às notas musicais, enquanto o poema tem de formar a sua própria musicalidade. - manifestei-me.

- Eu via minhas letras como um passatempo de esnobe, embora tivesse composto com Aníbal Cruz um samba que foi gravado pela Carmem Miranda. Em Los Angeles, onde fiquei cinco anos como vice-cônsul, coloquei letras em músicas do Laurindo de Almeida, reconhecido como grande compositor de filmes de Hollywood, isso em 1947. Eu me relacionava com Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, ficava horas assistindo Billie Holiday cantar. Revelava-se, então, para mim, que a música popular era uma manifestação cultural importante.

- Qual foi seu primeiro emprego, poeta?

- Levado por Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do Ministro da Cultura, Gustavo Capanema, trabalhei na censura de filmes, em 1936. Fui censor em um período no qual não se censurava quase nada, pois os filmes já vinham cortados dos estúdios. Mas eu aparecia lá para assinar o ponto e bater papo. Houve quem dissesse que eu dormia durante as projeções e liberava todas as fitas. Acertaram em parte: aprovava tudo, de fato, mas não dormia, gostava de cinema e até entrei em uma polêmica, que depois reconheci como insana, entre cinema mudo e falado. Eu decorei falas inteiras do “Cidadão Kane”, e com isso deixava Orson Welles boquiaberto quando, vice-cônsul em Los Angeles, convivi com ele.

- E com o diploma de advogado na mão?

- Trabalhei no Foro durante um mês e me sentia um peixe fora d' água. Não me sentia em casa, não tinha vocação forense.

- Então, você se tornou censor e, depois, partiu para a Inglaterra.

- Isso foi em 1938, tinha vinte e cinco anos e já preparava meu quarto livro de poemas, um deles premiado. Solicitei, então, ao Conselho Britânico uma bolsa para estudar literatura e língua inglesa, em Oxford.

- E seria o primeiro bolsista brasileiro a estudar em Oxford.

- Em meu embarque, lá estavam minha irmã, Lygia, mais Octávio de Faria e Portinari, sobraçando meu retrato a óleo, mas faltou a Tati...

- A sua primeira mulher... - pensei em acrescentar “de uma série de nove”, mas me detive a tempo, pois apesar da quantidade de uísque que já bebera, o poeta permanecia sóbrio.

- Por ela, escrevi um dos meus melhores sonetos.

- Na Inglaterra, você se enfronharia nas mais elevadas das poesias e estudaria profundamente os versos de um dos maiores sonetistas, Shakespeare.

- Eu, que remei no Flamengo, não consegui ser remador da Universidade de Oxford.

- Você foi para uma Inglaterra que estava prestes a entrar na guerra.

- Vi, em Londres, o ingênuo primeiro-ministro Chamberlain acenando com aquele tratado que entregava a Tchecoslováquia à Alemanha de Hitler, para inutilmente evitar a guerra.

- E como você voltou ao Brasil, com a guerra já deflagrada?

- Por causa da má vontade do nosso embaixador, em Londres, tive de pegar um navio que fazia a rota para Angola.

- No Brasil, depois dessas peripécias, você se preparou para o concurso do Itamaraty.

- Eu estava casado, tinha de procurar uma colocação, porque a advocacia não era minha praia. Parece que já disse isso...

- Sabemos que passou no concurso na segunda tentativa e que, pouco depois, sua atenção se voltaria mais para a música popular brasileira do que para os livros de poemas.

- Compus mesmo, sem ideias de passatempo, o samba “Quando tu passas por mim”. Dei parceria a Antonio Maria, mas era tudo meu. Tinha feito um trato com ele, comum naquela época, de criar sozinho um samba e lhe dar parceria. E ele, em troca, faria sozinho outro e me daria também parceria. O trato foi muito lucrativo para mim, porque Maria, naquela época, era um letrista muito conhecido, e eu, não.

- E Orfeu da Conceição?

- Eu estava na casa do meu concunhado, Carlos Leão, em Niterói, lendo um livro de mitologia grega sobre Orfeu. Ouvi, então, uma batucada que vinha do morro do Cavalão. A ligação daquela batucada com Orfeu, poeta e músico, foi instantânea. Orfeu seria um sambista que, por ser dotado de grande beleza interior, era cobiçado pelas mulheres e invejado pelos outros homens do morro, que também cobiçavam sua mulher. Nessa mesma noite, escrevi todo o primeiro ato da peça.

- Lila Bôscoli, sua terceira mulher, disse o seguinte sobre seu trabalho no “Orfeu” para João Carlos Pecci, irmão do Toquinho:

“- Ele bebia muito, mesmo! E nada lhe fazia mal, era um touro de saúde. Eu nunca vi Vinícius escrever uma linha de poema se não estivesse absolutamente sóbrio. Às vezes, meio de porre, anotava algumas coisas no maço de cigarros. E no dia seguinte, olhava e dizia: “- Que besteirada!”. Tinha de estar lúcido para escrever. Sentava-se diante da máquina, lápis apontados, borracha, caneta, uma organização que chegava a ser metódica. E não admitia interrupções. Fazia do ato de escrever um trabalho de pesquisa mesmo! Às vezes, refazia um verso em vinte formas, até achar a ideal.”

- Ainda assim, ao regressar de Los Angeles, em 1950, perdi o terceiro ato em algum lugar. João Cabral de Mello Neto me animou a reescrevê-lo, o que fiz em 1953. Lancei, depois, a peça para um concurso pelas comemorações do IV Centenário de São Paulo. A peça mereceu um dos três primeiros prêmios, mas “Orfeu da Conceição” não foi montada, pois a consideraram muito complexa.

- Como você passou alguns anos em Los Angeles, terra das trilhas sonoras, pensou em alguém para musicar sua peça?

- Pensei no Vadico, mas ele, adoentado, se sentiu sem fôlego para assumir essa responsabilidade.

- Foi quando Lúcio Rangel o apresentou a Tom Jobim, no famoso bar da Casa Villarino, no centro do Rio.

- Tom Jobim recebia elogios de Villa Lobos e frequentava muito a Rádio Nacional, para ver Radamés Gnatalli reger, o que era um aprendizado para ele, como dizia humildemente.

- Sua parceria com Antônio Carlos Jobim se firmou a partir de então. E veio a bossa nova.

- Parece que o espírito de outro escritor quer baixar. - interrompeu o fluxo da sua narrativa.

- É a sombra de seu braço quando levanta o copo, Vinícius.

Mais relaxado, prosseguiu:

- Sobre “Chega de Saudade”, era outubro de 1956. Tonzinho apareceu e me disse: “- Olha que tema engraçado que eu fiz.” Gostei da melodia, achei uma coisa diferente, tão nova, tão original. Mas a letra me deu uma surra danada, levei uns quinze dias para fazer. Queria manter aquelas dissonâncias especiais, depois pouco a pouco fui atingindo o que pretendia e, quando João Gilberto conheceu o samba, ficou louco. Começou a cantar muito e foi nessa época que se descobriu a nova batida. Depois, João Gilberto gravou seu primeiro LP e, no texto da contracapa, Jobim o chamou de baiano “bossa nova”.

- Tom Jobim explicou que escreveu assim porque o pessoal já ligava Bossa Nova à batida do violão, mas que a Bossa Nova era mais do que isso, havia a melodia, a letra... – lembrei.

- Acabou o uísque... – disse ele, erguendo-se da poltrona.

- Mas temos ainda muitos temas para tratar, poeta. – lamentei.

- Hora do adeus, amigo... - despediu-se, apenas um segundo antes de se esvanecer no éter.

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